"Ponto de vista" - União Europeia: após a deprimente abstenção, outro rumo.


 

    União Europeia: após a deprimente abstenção, outro rumo.
     
Há duas semanas, nestas mesmas páginas, interroguei-me sobre se as eleições para o Parlamento Europeu (que bem poderia passar a ser eleito pelos Parlamentos nacionais...)  poderiam constituir um susto benéfico para a própria União, dado o grande nível da abstenção bem como do que eventualmente ocorreria quanto ao voto nos partidos tradicionais e à sua transferência para partidos e movimentos eurocépticos.

Referi que os sinais de alarme já ressoavam há muitos anos, com as abstenções em crescendo, ultrapassando paulatina e gradualmente os 50% em quase todos os Estados-Membros da União Europeia, provocadas pelo desencanto que apesar dos inúmeros sucessos das políticas comunitárias (frouxamente demonstrados por
débeis tentativas da Comissão Europeia) se instalou em vastos sectores populacionais.

O pressentido susto ocorreu, com uma grande abstenção, aliada a um significativo crescimento de partidos e movimentos quer eurocépticos, quer de cariz xenófobo, ou mesmo tendencialmente anti-democrático, comprometendo assim o projecto de uma União Europeia solidária e tão forte no mundo quanto maior a sua coesão.

Há assim que pensar em mudar de rumo, corajosamente, após confirmação das carências há muito identificadas.

Situando no desemprego as raízes do constatado sentimento de desencanto e decepção, bem como na diminuição da qualidade do emprego, apontei então para a necessidade de uma nova política de investimentos, encabeçada pelo Banco Europeu de Investimento (BEI), que porém não será por si só a solução que tudo resolveria.

Mas, como afirmei, outros factores haverá que abordar para se proceder a uma urgente mudança de rumo.

O mais importante situa-se na organização da vida política e na fraca participação nela da generalidade dos cidadãos, parecendo haver um progressivo alheamento dos cidadãos face aos seus representantes eleitos.

Como já assinalei há algum tempo, tal sentimento não acontece por acaso e a razão é relativamente simples: os cidadãos não se sentem suficientemente próximos dos representantes que elegem, tanto a nível nacional como a nível europeu, numa era em que as televisões e a comunicação electrónica a nível horizontal diminuíram substancialmente o contacto pessoal directo, e em que os desempenhos televisivos quer pela televisão clássica quer por transmissões através da Internet permitem aos políticos com mais capacidade de comunicação oral e de representação uma maior eficácia na transmissão de conceitos GFmuitas vezes demagógicos e não suficientemente sustentados em argumentos baseados numa  credibilidade decorrente de provas dadas no exercício de funções anteriores.

E não é a panaceia dos "círculos uninominais" que irá concretizar a aproximação entre eleitores e eleitos;  por exemplo, no caso de Portugal, é difícil imaginar que um deputado possa escutar individualmente as algumas dezenas de milhar de eleitores que lhe caberiam.

E também não serão operações de cosmética interna dentro da arquitectura institucional da União Europeia que irão aproximar os eleitores daqueles que elegeram, e que dificilmente compreendem - por exemplo - o que é um "spitzenkandidat"...

A saúde das democracias está na sua base, que é o poder local, que permite escolhas mais sustentadas, baseadas na observação e no diálogo, permitindo aos eleitos a este nível que escolham melhor os que devem pertencer a um patamar superior - este já com poderes de intervenção no plano das altas funções do Estado..

Entretanto adensam-se sombras sobre as democracias representativas, que se pensava iriam progressivamente ser adoptadas pelos países mais desenvolvidos bem como por outros em que a "economia liberal" pudesse contribuir para a instituição e consolidação do modelo democrático assente na representação eleitoral.

Tal não tem vindo a suceder tendo mesmo ocorrido diversos retrocessos no sistema democrático, nomeadamente quando o poder político é obtido por dirigentes carismáticos que depois manipulam sistemas de informação para a seguir se apoiarem então nas forças armadas e policiais, bem como no sistema financeiro, visando continuarem no exercício do poder.

A atribuição do poder essencialmente a partidos políticos escolhidos em processos eleitorais separados por significativos intervalos temporais, aliada a incapacidades de verdadeira comunicação com os eleitores, tem vindo a produzir alheamentos que muitas vezes se traduzem no surgir de novos partidos acompanhado pela queda de alguns dos existentes.

Têm sido apresentadas "soluções" visando aproximar mais os eleitores dos eleitos,  consistindo habitualmente em modelos engenhosos, mas que continuam a enformar dos mesmos defeitos, dado que apenas duas ou três centenas de deputados não conseguem contactar directa e frequentemente as dezenas de milhares de cidadãos que constituem as suas circunscrições eleitorais.

Não havendo provavelmente muitas maneiras de fomentar uma aproximação que permita contribuir para uma maior participação na vida política, tal poderá contudo ser tentado através da transferência de mais poderes para as unidades políticas que permitem o contacto presencial mais frequente - as freguesias, no caso português.

Tais poderes seriam de dois tipos: por um lado e como é óbvio, os que respeitem à vida local e sejam compatíveis com os que podem ser atribuídos a organismos de pequena dimensão.

Por outro, a competência para a participação num grande colégio eleitoral que designaria uma lnstituição (tipo "Senado") com poderes relevantes na organização do poder político do Estado, a um nível institucional paralelo ao do Parlamento; e, igualmente, a nível concelhio visando a eleição da assembleia municipal.

Com o primeiro tipo de competências, aumentar-se-ia a participação directa dos cidadãos na vida política local, o que contribuiria para um melhor conhecimento do desempenho dos eleitos.

O segundo teria como resultado uma maior preocupação dos partidos e forças políticas no que respeitasse às escolhas de candidatos para o exercício do Poder Local na sua primeira instância - onde seriam melhor submetidos ao escrutínio dos cidadãos, igualmente contribuindo assim para o aperfeiçoamento dos próprios partidos e movimentos políticos.

Entretanto importa igualmente considerar que cada vez se torna mais necessário compensar o afastamento presencial entre as pessoas provocado pelo enorme incremento da comunicação electrónica, quer pela dependência da Tv clássica e dos seus sucedâneos tipo Netflix, quer pelo exponencial aumento do que é uso apelidar-se de "redes sociais".

Assim, dadas as dificuldades que advêm da cada vez menor disponibilidade dos cidadãos para se deslocarem às sedes dos órgãos de poder local de base (nomeadamente em grandes áreas urbanas), decorrentes das mudanças sociológicas que têm vindo a ocorrer - e não esquecendo o crescente tempo dedicado à comunicação electrónica - pode ser de aconselhar a hipótese de uma maior utilização deste instrumento como veículo intermédio de comunicação e aproximação, o que permitiria haver redes de intervenção cívica com capacidades de extensão telemática.

Imagine-se assim um orgão de Poder Local que delimita diversas áreas geográficas no seu território em função dos parâmetros que considere mais apropriados - por exemplo  o tempo de 15 minutos para uma deslocação entre dois dos seus extremos - e providencia por que sejam depositados convites nas caixas postais indicando não só os sítios Internet apropriados como também o endereço electrónico de um coordenador local provisório, apelando à participação na discussão de questões relacionadas com a área geográfica indicada no mesmo convite, e a uma posterior eleição de um novo coordenador, em processo regulado pelo órgão de Poder Local na sequência da difusão dos nomes e endereços electrónicos dos participantes que autorizassem tal procedimento.

Coordenador esse que seria convidado a participar em reuniões mensais de coordenadores "de bairro" com um elemento do Poder Local, que nas suas reuniões públicas daria conta dos assuntos analisados.

Participação que, bem apoiada, se tornaria progressivamente mais interventiva, induzindo nos cidadãos uma maior presença na vida política local, fomentando o uso da comunicação electrónica na troca de ideias relacionadas essencialmente com o Poder Local, e melhorando as escolhas, a nível local, de candidatos das forças políticas - observados mais de perto - com desejáveis reflexos nas respectivas organizações.

Ou seja, colocando os cidadãos mais perto dos seus representantes eleitos, permitindo assim uma vida política mais saudável - não só a nível local, mas também nos planos nacional e europeu: melhores e fundamentadas escolhas, melhores resultados.

Caminho lento ? Certamente.
Mais eficaz ? Seguramente.

27.Maio.2019




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