"Ponto de vista" - Referendo sobre regionalização: uma improbabilidade ?



    Referendo sobre regionalização: uma improbabilidade ?


Dado que o assunto da regionalização voltou a fazer parte da agenda política, parece oportuno recordarmos o que já ocorreu em 1998, ocasião em que o Parlamento apresentou ao Presidente da República uma proposta de realização de um referendo sobre a instituição em concreto das regiões administrativas, perguntando aos cidadãos eleitores recenseados em território nacional se concordavam com tal iniciativa.

O Presidente da República, certamente admitindo que esta matéria não dizia especificamente respeito aos cidadãos residentes no estrangeiro, submeteu-a a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade e legalidade, as quais foram verificadas pelo Tribunal Constitucional (Acórdão 532/98) - porém com diversos votos de "vencida/o", entre os quais o do próprio presidente, Conselheiro Cardoso da Costa, precisamente no que respeita à questão dos residentes no estrangeiro, e cuja pertinência me parece evidente, pois entendia que deviam ter o direito de opinar sobre tal matéria.

O referendo realizou-se porém sem o número de votantes necessário para ser considerado válido, pelo que parece útil olharmos para a eventualidade da convocação de um novo referendo admitindo que a Assembleia da República vai voltar a restringir o seu âmbito aos eleitores recenseados em território nacional - à luz das últimas modificações no recenseamento eleitoral - para o que necessitará do aval do Presidente da República bem como o do Tribunal Constitucional.

(Vem a propósito lembrar que caso a pergunta a referendar seja formulada nos mesmos moldes e enquadramento em que foi feita em 1998, um eleitor que resida em Ayamonte e cujo cartão de cidadão indique que mora em Vila Real de Santo António pode participar no referendo sobre a regionalização; mas um seu vizinho, português, cujo cartão de cidadão nacional refere morar em Ayamonte, já não o pode fazer.).

Sendo cerca de 9,3 milhões os cidadãos recenseados no território nacional surge logo uma questão interessante, uma vez que caso todos nele residissem aquele número deveria corresponder a cerca de 85% do conjunto total de cidadãos, uma vez que os restantes - com idade inferior a 18 anos - não constam ainda do recenseamento eleitoral, pelo que a população nacional residente no Continente e Regiões Autónomas seria de cerca de 11 milhões...

A explicação desta aparente anomalia - (dado que os números oficiais não atingem tal quantitativo, e se bem que eu não disponha de dados sobre o número de bilhetes de identidade ainda existentes, mas que creio ainda rondarem 1 milhão - muitos deles ainda no estrangeiro) está certamente no facto de haver milhares de eleitores que embora residam no estrangeiro indicam como morada - aquando da emissão do cartão de cidadão - uma residência no território nacional. E certamente muitos de entre eles estarão entre os alegadamente cerca de 200 ou 300 mil que entre 2012 e 2015 emigraram devido à crise económico-financeira ocorrida nomeadamente naqueles anos.

Nunca é demais referir que, no actual enquadramento do Recenseamento Eleitoral este é fundamentalmente (excepto para estrangeiros residente em Portugal) determinado pelo Sistema de Identificação Civil (com as virtualidades e eventuais  deficiências que este determina), pois a.lei do Cartão de Cidadão considera a “residência voluntariamente declarada pelo cidadão” como determinante para todos os efeitos de contacto do Estado , bem como - de acordo com a lei do Recenseamento Eleitoral - para efeitos da respetiva circunscrição de recenseamento.

Admitamos entretanto, como hipótese de trabalho, que o actual número de portugueses residentes habitualmente no território nacional é de 10,2 milhões.

Tal significaria que os cerca de 85% em idade de votar corresponderiam a cerca de 8,6 milhões.

O que, subtraído aos 9,3 milhões de recenseados no território nacional, apontaria para que houvesse cerca de 630 mil emigrantes que continuam a declarar aqui residirem..

Mas se em vez dos inicialmente aventados 10,2 milhões colocássemos 10,5 os 630 mil passariam a cerca de 370 mil, enquanto que se admitíssemos sermos 10 milhões os 630 mil passariam para 800 mil.

É evidente não ser significativa a probabilidade de haver a deslocação de muitos emigrantes para exercerem em Portugal um seu direito de voto presencial; o que importa é ter presente a estrutura do universo eleitoral, e o modo de exercício de tal direito - presencial ou por correspondência - nos principais tipos de actos: eleições presidenciais, legislativas, regionais, autárquicas, europeias, e nos referendos.

o que parece inegável é o facto de haver milhares de imigrantes que continuam recenseados em Portugal (e que provavelmente não se deslocaråo à sua área de residência para votar num referendo) contribuindo assim para o aumento da respectiva taxa de abstenção e por consequência para uma menor probabilidade de tal consulta ser válida.

Estudará bem a Assembleia da República todas estas questões, diversas delas inter-relacionadas - desde a lei orgânica do referendo às do recenseamento e do cartão de cidadão e do sistema de identificação civil, bem como às  leis eleitorais e de organização do Censo de 2021 ?

Fala-se, e muito, da reforma do Estado.
A muitos níveis.
Talvez seja tempo de se começar a pensar na forma do Estado.

16.Junho.2019