Alm.Nobre de Carvalho comenta o Programa Eleitoral do PS na área da Defesa Nacional.

................

A partir daqui poderá ser lido o minucioo comentário do Alm.João Nobre de Carvalho ao Programa Eleitoral do Partido Socialista, na área da Defesa Nacional, e que a seguir igualmente se reproduz:


"A DEFESA NACIONAL NO PROGRAMA ELEITORAL DO PARTIDO SOCIALISTA

Relativamente à Defesa Nacional, resolvi ir analisando os Programas Eleitorais dos vários Partidos políticos para a próxima legislatura, começando agora pelo Socialista, que as sondagens de opinião apontam como provável vencedor das eleições de Outubro de 2019,
De um modo geral, o Programa Eleitoral do Partido Socialista (PES), parece ignorar o disposto na Constituição da República, nomeadamente nos  Artigos 273º e 275º e 276º e  está eivado de incoerências, contradições, mistificações e imprecisões, como demonstrarei a seguir na análise na especialidade.
A meu ver o PES não contribui decisivamente para alterar a grave realidade actual das Forças Armadas, caracterizada por uma significativa  falta de efectivos relativamente aos Quadros Orgânicos aprovados para as Missões e pelo permanente protelamento e cancelamento de projectos de reequipamento, bem como pelas queixas formuladas pela Associações de militares relativamente às últimas alterações ao Estatuto dos Militares (EMFAR) e ao estado a que chegou o apoio social no dominio da saúde.
Vejamos agora com mais detalhe o que dispõe a Lei Fundamental sob o tema em apreço:
O Artigo 273º afirma, com uma clareza cristalina:
“Nº 1- É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional.”
“Nº 2- A defesa nacional tem por objectivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas.”
O Artigo 276º estabelece no “Nº 1 – A Defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses”.
Ora o  PES afirma logo no início, sob o título nebuloso “3. Garantir a Defesa num Território Alargado”,  ser  “uma prioridade irrecusável do Estado uma Estratégia de Defesa Nacional que contribua para que Portugal e os portugueses possam decidir o seu futuro soberano no quadro de interdependências que livremente escolheram”. Logo a seguir e reiterado ao longo de todo o documento, afirma-se que essa estratégia “terá de ser conjugada com o enquadramento económico-financeiro prevalecente”, esvaziando assim a grandiloquente afirmação anterior.
Em minha modesta opinião, esta liberdade poética do PES sobre a Estratégia de Defesa Nacional é francamente redutora relativamente ao definido no nº 2 do supracitado Artigo 273º da Constituição. A Defesa Nacional, como garante da independência nacional, da integridade do território e da liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa, tem de ser considerada a primeira prioridade do Estado, devendo ser-lhe atribuídos os recursos humanos e financeiros necessários, de acordo com o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e o Conceito Estratégico Militar devidamente aprovados. Face ao quadro de ameaças, importa tomar consciência que a Instituição Militar não pode ser encarada de uma forma que permita justificar o desinvestimento, como se fosse um mero peso orçamental, devendo este procedimento ser criticado, como afirmou o General José Luís Pinto Ramalho, ex-Chefe do Estado-Maior do Exército, no seu excelente e oportuno livro ”Pensar a Defesa Nacional”, dado à estampa no corrente ano:
O Artigo 275º da Constituição institui:
“Nº1- Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República”
“Nº 5- Incumbe à Forças Armadas nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte.“
“Nº6- As Forças Armadas podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação.”
Ao elencar as principais prioridades para melhorar a eficiência das Forças Armadas, afigura-se que o PES procura justificar a sua existência apenas para executar dois tipo de missões:  como um instrumento da política externa, objectivo situado em 5º nível de importância no referido Artigo da Constituição,  e para a execução das missões de interesse público, relegadas para o 6º plano na Mãe de todas as leis, quando afinal,  esta atribui às Forças Armadas, em primeiro lugar, a defesa militar da República, aliás a razão de ser da Instituição Militar.
Deste lamentável equívoco do PES decorre o exagerado ênfase que atribui à aquisição de equipamentos militares que privilegiem o “duplo-uso”, prejudicando a sua principal finalidade, a defesa militar.  Uma grave mistificação, que prejudica, sobretudo,  o Exército. Na verdade, enquanto os navios e aeronaves da Marinha e da Força Aérea, navegando em treino militar no espaço jurisdicional português, realizam simultaneamente um trabalho de fiscalização e afirmação da soberania, o armamento ligeiro e pesado do Exército tem apenas, na grande maioria dos casos, utilização militar, não beneficiando assim da alegada prioridade no “duplo uso” militar e civil.
Sobre a gritante falta de 6.000 Praças nos Quadros Orgânicos dos três Ramos das Forças Armadas, com relevo para o Exército, que motivou recentes  declarações  públicas, contundentes, do Almirante Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), lamentavelmente objecto, logo a seguir, de uma tentativa de minimização pelo Ministro da Defesa Nacional numa intervenção “en passant” a órgãos de comunicação social, sugerindo que se demitisse do cargo, atitude que indignou os militares, o PES coloca este momentoso tema da falta de Praças,  em penúltimo lugar nas suas prioridades, com a seguinte redação: “Garantindo a estabilidade dos efectivos, após adequado planeamento, no que respeita aos quadros orgânicos.” Adoptar a postura do avestruz face ao perigo, enterrar a cabeça na areia, não resolve os problemas, antes os agrava.
O PES revela, a meu ver, uma deficiente compreensão da História e da política internacional, que se rege pelos interesses percebidos por cada Estado. Portugal tem de manter-se atento à evolução das capacidades militares dos vizinhos a Leste e a Sul, à sua evolução política e às possíveis intenções dos respectivos governos, não descurando nunca o armamento e a preparação das nossas Forças Armadas para a defesa militar do País.
É importante, como disse o Professor Adriano Moreira, olhar para o mapa da Europa nos últimos 200 anos, como se espreitássemos por um caleidoscópio, constatando como se alteraram as fronteiras, como desapareceram Estados e se criaram outros, em consequência de guerrras, como um Estado pode passar facilmente de amigo a inimigo e vice-versa. No mundo, os conflictos militares estão longe de desaparecer.
O nosso País não está livre, por exemplo, de inopinadamente, serem descobertos recursos minerais raros, em terra ou no subsolo marinho sob a sua jurisdição, que sejam indispensáveis ao desenvolvimento económico e suscitem a cobiça de outros Estados. O nosso vizinho ibérico, actualmente sujeito a intensas forças centrífugas internas, através da História sempre sonhou em dominar a península, nomeadamente os portos da vertente atlântica. Agora é um Estado amigo mas não se sabe até quando.
Perante a eclosão de uma terceira guerra mundial, Portugal pode voltar a ser cobiçado por uma grande potência beligerante que pretenda conquistar a Europa, como aliás já aconteceu durante a Grande Guerra de 1939/45.
Os Estados que compõem actualmente a União Europeia divergem significativamente na política externa, o Reino Unido, uma das duas potências com armas nucleares, poderá desligar-se em breve,  vislumbram-se outras fissuras e existem evidentes sinais de crise em algumas economias europeias importantes. A Rússia é percebida de modo diferente pela Alemanha, pelos países balticos, pelos do Leste da Europa,  bem como pela França e outros países do Sul. Por isso, uma defesa comum europeia credível sem o apoio dos Estados Unidos da América, é problemática. O Tio Sam há muito que vem insistindo com os Estados europeus da OTAN para aumentarem o investimento na área da Defesa mas a Europa tem preferido trocar canhões por manteiga, como alguém já referiu.
Portugal também não está imune ao terrorismo, nomeadamente de origem islâmica, quando recebe anualmente cerca de onze milhões de turistas europeus, americanos e chineses, alvos apetecíveis. Acresce ainda a possibilidade de o nosso País ser colocado subitamente perante uma ameaça inteiramente nova e imprevisível neste momento.
Perante o quadro de ameaças que descrevi, verifico que o PES  caracteriza de forma demasiado ligeira  o ambiente de segurança do século XXI, ignorando nomeadamente a imigração ilegal e o terrorismo islâmico, bem como o recrudescimento da pirataria marítima no Golfo da Guiné, onde cruzam navios de comércio e de pesca de bandeira portuguesa, cuja defesa armada exige uma rápida análise e tomada de medidas legislativas. Também, no tocante ao combate ao terrorismo, o PES não contem uma medida  inovadora que permita, no caso de elevação do patamar da ameaça, a actuação das Forças Armadas,  em especial do Exército,  em apoio das  Forças de Segurança, por exemplo na proteção de infra-estruturas sensíveis, como já acontece em outros países europeus.
O PES, ao minimizar as ameaças, torna menos evidente para os eleitores a necessidade imperiosa de lhes contrapôr um quadro de defesa nacional coerente, que garanta a defesa militar  do território e a manutenção das infra-estruturas que permitam, em caso de necessidade, levantar mais forças. A Nação portuguesa, se fôr devidamente esclarecida não regateará recursos para dispôr de umas Forças Armadas correctamente dimensionadas, eficientes, dispondo de plataformas, armas, sensores, equipamentos e  padrões de treino que assegurem a interoperabillidade com as suas congéneres da OTAN e da UE.
O PES sob as epígrafes “Valorizar o exercício de funções na área da Defesa”, “Qualificar as Forças Armadas e consolidar a profissionalização”, elenca as medidas que é necessário adoptar para o reconhecimento da especificidade do exercício de funções na área da Defesa Nacional.  Decorridos 45 anos desde os golpes de Estado do 25 de Abril de 1974 e de 25 de Novembro de 1975 que restituiram a democracia aos portugueses, é deveras elucidativo o estado a que sucessivos governos, inclusivamente do PS, reduziram a  Condição Militar, prometendo-se, mais uma vez, tomar medidas.
Nas acções destinadas a “Estimular a Indústria de Defesa”, o PES refere “Promover a gestão dinâmica de capacidades, com a venda de equipamentos prestes a atingir o ciclo de utilização ou excedentários, com vista à obtenção de recursos para a Lei de Programação Militar (LPM) e em programas de apoio à indústria de defesa”. Espero que essa venda de equipamentos, por exemplo da espingarda G-3, ainda do tempo da Guerra do Ultramar, não ocorra antes da sua  substituição atempada por equipamentos modernos. Temperando os meus comentários com um pouco de humor negro, se este desfazamento  acontecer,  então nesse interim, o Exército, numa ação de gestão dinâmica, cumprindo uma missão de serviço público,  poderia talvez ser empregue, por exemplo, no combate aos fogos florestais.
Sob o título “Dinamizar a componente externa da Defesa”, o PES merece aplauso quanto ao reconhecimento da  relevância da centralidade de Portugal em todo o Atlântico e a intenção de dinamizar, a Acordo de Cooperação e Defesa com os EUA, bem como a cooperação técnico-militar no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Oficial portuguesa (CPLP). Neste último aspecto talvez o programa pudesse ser mais ambicioso quanto ao estudo da criação, neste âmbito, de uma força militar combinada.
Quanto a “Reforçar a ligação da Defesa Nacional aos portugueses”, o PES é lamentavelmente redutor, ao centrar esse esforço apenas no Dia da Defesa Nacional, como vem acontecendo nos últimos anos. Tendo em conta que a Defesa Nacional é direito e dever fundamental de todos os portugueses, como muito bem estabelece a Constituição da República, penso que para compensar a eliminação pura e simples do Serviço Militar Obrigatório (SMO), é indispensável criar um plano conjunto entre os Ministérios da Educação, da Defesa Nacional e da Segurança* Interna, para concretizar nas escolas do ensino básico, técnico-profissional e secundário a sensibilização dos jovens para a importância da Segurança e Defesa da Pátria.

Parede, 12 de Agosto de 2019

João Nobre de Carvalho
Contra-Almirante na situação de reforma."

*Observação do Autor: deverá ler-se "Administração", em vez de "Segurança".




.