"Ponto de vista" semanal: Abril de 1974: partidas da memória.

Abril de 1974 - partidas da memória.
  A memória "prega" partidas - expressão popular que mais uma vez pode corresponder à verdade no caso de alegadas transferências de fundos documentais existentes na DGS/PIDE, nomeadamente processos individuais de cidadãos objecto da "curiosidade" daquela polícia política, as quais teriam como destino a então União Soviética.
  Uma demonstração de como sobre este assunto têm corrido as mais diversas versões é um depoimento de um distinto Oficial do Exército, participante com grande relevância na constituição do Movimento das Forças Armadas e nos anos seguintes à deposição do Estado Novo, de cujas recentes declarações a um jornal de referência se extrai o seguinte:
   "(...)Existe a convicção de que há um desvio programado e volumoso de ficheiros da PIDE para a União Soviética e até há umas visões de umas camionetas que saem, não se sabe de Caxias... Ora nada disso aconteceu. São as próprias tropas do Salgueiro Maia que guardam os documentos mais importantes, e os levam para Caxias antes de regressarem a Santarém. A estrutura que fica a funcionar é uma estrutura militar, comandada por militares, e com indivíduos civis. Estes últimos pertencem a vários partidos políticos. A minha leitura é a seguinte: é muito natural que tivessem desaparecido, um ou outro.(...).".
  Embora eu creia que não tenha ocorrido nenhum "desvio programado e volumoso de  ficheiros" (como aliás foi confirmado há alguns anos pelas principais responsáveis da Torre do Tombo, para onde a documentação em causa foi transferida), há o que parece ser uma inconsistência evidente nas declarações citadas, e que ajuda a compreender as "partidas da memória" a que me refiro no título do presente texto, pois a notória boa-fé de quem as proferiu é prejudicada pelo que consta do Relatório do então Capitão de Cavalaria Salgueiro Maia, referente às operações conduzidas sob o seu comando de 25 a 27 de Abril de 1974, documento que tem sido abundantemente transcrito na numerosa bibliografia existente a propósito daqueles dias.
  Assim, no que respeita ao dia 26, é indicado que o Tenente de Cavalaria Santos Silva se deslocou para a rua do Alecrim a fim de "cercar o comando da DGS", tendo regressado pelas 19 horas, parecendo evidente que seria muito difícil que em tão pouco tempo tivessem sido "as próprias tropas do Salgueiro Maia" a seleccionar e a guardar "os documentos mais importantes".
  No que se refere ao ocorrido no dia 27, o Relatório do então Cap.Salgueiro Maia indica que as forças sob seu comando (ainda em Lisboa) saíram "pelas 14 horas a fim de escoltar os arquivos existentes na Escola Prática da DGS.", não havendo qualquer referência ao local para onde teriam sido transportados.
  Tais arquivos não fariam certamente parte do material sensível da DGS/PIDE, nomeadamente o pertencente ao "CI.2" e às escutas telefónicas, bem como às relações com a C.I.A. e com outros organismos, que estavam na sede da polícia política, como eu próprio tive a oportunidade de constatar no dia 26.
  Eis assim uma pista (arquivos da Escola Prática da DGS/PIDE) que pode ajudar a compreender as razões pelas quais a memória "pregou" uma partida a alguém que sinceramente estaria e está convencido de algo - a transferência de arquivos para Caxias - que só viria a ocorrer cerca de 2 meses depois da ocupação da sede da polícia política.
  Perguntar-me-ão talvez por que razão não menciono o nome do Oficial autor das declarações transcritas.  O motivo é simples: camaradagem.

 23.Março.2014.