Manifestos sobre o sistema eleitoral.
Acaba de surgir mais um Manifesto subscrito por pessoas muito conhecidas publicamente e que além de propor uma profunda revisão do sistema de financiamento de partidos políticos se debruça sobre o sistema eleitoral, apresentando diversas ideias centradas no aproveitamento da revisão constitucional de há dezassete anos, que permitia a criação de círculos eleitorais "nominais" - isto é, em que em vez da eleição proporcional de diversos deputados apenas seria escolhido o mais votado.
Segundo os 31 subscritores do "Manifesto por uma democracia de qualidade" (apenas do sexo masculino...) a introdução de uma componente de tais círculos coexistindo com um círculo nacional reforçaria claramente a proximidade pessoal entre eleitos e eleitores, havendo outras hipóteses de conjugação entre aqueles tipos de círculos como os que ocorrem na Alemanha e na Irlanda, ou a adopção do voto preferencial em listas plurinominais.
O Manifesto referido acabou por passar algo desapercebido devido a iniciativas e discussões de âmbito partidário centradas sobre a redução do número de deputados, bem como a outras de natureza cosmética e de confronto de personalidades, mas nem por tal motivo deixa de ser importante voltar a este assunto sobre o qual me tenho pronunciado publicamente diversas vezes, recordando o que na imprensa ("Público" e "Expresso") bem como no âmbito da SEDES e nestas páginas tenho publicado.
A criação de círculos uninominais coexistindo com um círculo nacional na eleição de deputados para o parlamento tem provado relativamente bem em países de economias mais desenvolvidas e em que existe um elevado grau de confiança tanto nos representantes eleitos em círculos uninominais como no funcionamento do sistema político.
Porém em Portugal tal grau de confiança parece ter deixado de existir, como se verifica pela análise das opiniões dos cidadãos que em diversos amostras se têm expressado sobre tal matéria, embora o grau de participação nos actos eleitorais demonstre que ainda existe esperança nas virtualidades da democracia representativa.
Assim, e como tenho vindo a sustentar quanto à hipótese da adopção de círculos uninominais, o facto é que no nosso país se por exemplo fossem 150 os deputados eleitos através de tal sistema caberia a cada um a representação de cerca de 60000 eleitores (por vezes pertencendo a mais que um concelho), pelo que é lícito perguntarmos se tal proporção possibilita diálogos consistentes e aprofundados com os seus eleitores, e que se tornam muito mais necessários em países como o nosso onde a democracia não está ainda arreigadamente implantada ou onde o grau de desenvolvimento cultural e económico está longe do desejável.
Volto a um exemplo que já citei antes, para demonstrar o distanciamento entre eleitores e representados dentro do actual sistema político, nomeadamente quando os primeiros sentem que aos segundos não lhes são outorgados poderes adequados: a freguesia onde resido tinha cerca de 20000 eleitores, dos quais a assistência média às reuniões trimestrais da Assembleia de Freguesia era da ordem das 8 pessoas, e de 5 no que respeita às reuniões públicas mensais da Junta. E com a "reorganização administrativa" do mapa das freguesias a nova "União" passou a ter 50000 eleitores - não aumentando - antes diminuindo -a taxa média de participação nas reuniões públicas...
O que se acaba de referir leva a recordar mais algumas reflexões públicas nestas páginas, começando pela dicotomia existente entre representação e participação na vida política, pois o aumento dos poderes de representação tem estado mais ligado às sociedades mais desenvolvidas, na medida em que as pressões provocadas por uma arquitectura social cada vez mais competitiva foram reduzindo o tempo disponível para um envolvimento mais intenso na vida política, contribuindo-se assim para a manutenção de um modelo herdado de tempos em que a distância entre eleitores e centros de poder não deixava outras alternativas que não fossem a delegação de poder nos eleitos.
Estes passaram assim a constituir o que habitualmente se tem designado por “classe política”, que apoiada por uma parte dos cidadãos agregados em partidos políticos assumiu como que um estatuto de natureza profissional dentro de um processo de divisão do trabalho em que a sociedade lhes confere o exercício da direcção política do país.
Contudo este processo tem muitas limitações, na medida em que a intervenção política dos restantes eleitores apenas se consubstancia com maior incidência nos processos de natureza eleitoral, se bem que tenha aumentado uma forma de participação traduzida na troca de informações e opiniões por via electrónica – embora habitualmente com reduzidos efeitos nos períodos post-eleitorais.
De tudo isto resulta um afastamento notório entre “classe política” e partidos políticos, por um lado, e eleitores por outro, o qual se traduz nas expressões coloquiais que ouvimos e lemos todos os dias e em que o termo “eles” e as ilações a ele associadas denotam claramente a existência de um significativo fosso consequência de tal afastamento e ao mesmo tempo símbolo da falta de participação na vida pública.
Assim, uma solução para se procurar melhorar a qualidade da democracia poderia ser a de se fomentar uma maior participação dos cidadãos ao nível local, nomeadamente na vida das freguesias, através da outorga aos seus representantes de competências na eleição de outros órgãos do poder político - por exemplo, um Senado cujas atribuições, cuidadosamente definidas, fossem de molde a reforçar a confiança dos cidadãos nos seus representantes políticos ao mais alto nível.
Poderia deste modo competir ao colégio de Assembleias de Freguesia a eleição de tal Senado, ou em alternativa a eleição de uma parte do Parlamento em que os restantes deputados seriam eleitos por um círculo nacional, e sempre através do sistema proporcional.
Ao reforço do poder político dos eleitos nas freguesias deveria logicamente corresponder um aumento das respectivas atribuições e competências na esfera do poder executivo, incluindo a redistribuição e descentralização de recursos das câmaras municipais.
Tal reformulação implicaria obviamente a reorganização do mapa das autarquias, pois uma participação política aprofundada não é compatível com a existência de freguesias com muitos eleitores.
Se os cidadãos sentirem que os representantes que elegeram directamente têm mais capacidade para melhorarem as condições de vida do local onde estão radicados, e que têm poderes de intervenção importantes na escolha de parte dos órgãos legislativos nacionais e das assembleias municipais, o seu grau de participação na vida política seguramente aumentará, e os partidos deixarão de aparecer como feudos inexpugnáveis, pois aumentará o grau de permeabilidade entre eles e os cidadãos.
Trata-se de propostas algo arrojadas, mas que paradoxalmente serão tanto mais necessárias quanto aumente a falta de contacto directo entre as pessoas que a vida moderna tem vindo a impulsionar, e que não é totalmente substituído pelas restantes formas de intervenção possibilitadas pela melhoria do sistema de comunicações, designadamente as de natureza electrónica.
Aos partidos políticos nada é retirado com a aplicação destes princípios, pois o aumento da participação política a nível local teria decisivo papel na melhoria do respectivo funcionamento e na sua ligação aos eleitores, atenuando-se a o existente fosso entre uns e outros.
Tais propostas - devo recordá-lo - têm porém um obstáculo no que respeita aos limites materiais da Constituição: a obrigatoriedade do sufrágio directo para a designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania.
Mas não vejo alternativas sólidas para melhorar a qualidade da democracia no sentido de além da representação eleitoral poder haver mais participação política.
21.Setembro.2014.