"Ponto de vista": 11 de Março de 1975 - entre o trágico e o burlesco.


    11 de Março de 1975 - entre o trágico e o burlesco.

    Decorrem esta semana 40 anos sobre um episódio que marcou profundamente a História de Portugal, e sobre o qual creio ser útil transmitir publicamente o que nele foi a minha participação - algo involuntária - que terá ajudado a inflectir o rumo dos acontecimentos ocorridos em 11 e 12 de Março de 1975.

    Recorro, para tal efeito, aos apontamentos tomados durante uma entrevista conduzida pela Professora Doutora Luísa Tiago de Oliveira no âmbito de um projecto inserido em metodologia de História Oral, que está em fase final de conclusão, e para o qual a minha participação lhe foi proposta pelo Comandante Carlos Contreiras - ele próprio igualmente entrevistado.

    Devo desde já acentuar que a minha memória deixa muito a desejar, não por ter ingerido BavaRoise a  mais (esclareço que se trata de uma tentativa de humor a propósito do recente depoimento de um conhecido "telefonista" em comissão parlamentar de inquérito...), mas porque sempre nela retive mais as grandes linhas relativas a acontecimentos importantes do que meros pormenores, pelo que procuro quanto a estes tentar deduzir o que creio que provavelmente teria feito em circunstâncias que me sejam relatadas.

    Acresce que quanto a acontecimentos relevantes em que estive presente - por exemplo a participação no comando de forças que ocuparam a sede da DGS/PIDE - só muito tarde é que tanto jornalistas como historiadores me colocaram questões, certamente por ter havido outros protagonistas com mais interesse, pelo que tal contribuiu para o apagamento gradual das minhas recordações.

    Assim, eis um resumo do que são as minhas recordações do sucedido no episódio que viria ser conhecido como o "11 de Março", e que poderão contribuir para o esclarecimento da pergunta que de quando me vão fazendo ("mas como é que apareceu naquele local ?" ) a propósito de uma recorrente cena filmada por equipa da RTP dirigida pelo distinto jornalista Adelino Gomes, que se dirigiu às imediações do Regimento de Artilharia de Lisboa (RALis) por também ter recebido informação da existência de ataques da Força Aérea contra aquele Regimento.

    A minha participação naquele acontecimento, o facto de ter sido parcialmente transmitida pela TV, a ausência de perguntas durante muitos anos por parte da generalidade dos meios de informação pública sobre o modo como apareci naquelas cenas, e uma natural predisposição minha para evitar a ribalta informativa contribuíram para que tal ficasse envolvido nalgum mistério, proporcionando interpretações contraditórias sobre o meu pensamento e maneira de ser, pelo que pretendo com este texto possibilitar mais alguma luz sobre o passado.

    Estava numa reunião no Estado-Maior da Armada, quando chegou a noticia de que estavam a ocorrer ataques da Força Aérea ao RALis, pois naquela zona moravam oficiais da Marinha e alguns dos que estavam presentes na reunião começaram a receber telefonemas das respectivas mulheres, referindo tais ataques. O Almirante Vilarinho, que dirigia aquela reunião, achou por bem face àquelas notícias cessá-la naquele momento, pelo que resolvi ir ver o que é se passava. Mudei para traje civil e apanhei um táxi pedindo ao condutor (Henriqueto Henriques Tomé, nome que não esqueci...) que me levasse à zona do Regimento.

    Chegados aos Olivais, pedi-lhe para esperar e dirigi-me no sentido do que parecia ser um núcleo de militares, que constatei ser uma secção de pára-quedistas em posição de cerco. Identifiquei-me perante o responsável e pedi-lhe que caso possível me desse uma ideia do que se estava a passar.

    Fui informado que o respectivo Comandante era o então Capitão Sebastião Martins, a quem me dirigi - ao mesmo tempo me apercebendo de que o então Capitão Dinis de Almeida tinha surgido nas imediações - pelo que lhes sugeri que trocassem impressões pois parecia-me existirem equívocos naquela situação, ao que acederam,  tendo então o diálogo sido gravado em video pela equipa da RTP que tal como Helena Vaz da Silva (Jornalista do "Expresso") estava presente no local, como já referido.

    Enquanto os dois principais protagonistas dialogavam apercebi-me de que a força de para-quedistas tinha recebido como missão assaltar e tomar o comando do RALis, enquadrada numa tentativa de golpe-de-estado, pelo que pensei que se devia tentar evitar o eclodir de uma situação de confronto militar de resultados imprevisíveis e num país que tentava caminhar no sentido de uma democracia - com eleições constituintes previstas para o mês seguinte.

    Foi por tal razão que procurei intervir no diálogo entre aqueles dois oficiais, nomeadamente após o Capitão Sebastião Martins nos ter mostrado um texto que seria a proclamação de intenções a ser difundida ao país (um tosco documento de duas páginas), enfatizando que o movimento militar de 25 de Abril de 1974 não deveria terminar numa luta fratricida pois tais não eram os seus propósitos, e que se ambos afirmavam estarem recebendo ordens das respectivas cadeias hierárquicas haveria um ponto em que ambas não coincidiriam,  sugerindo assim que fosse procurado o esclarecimento dos equívocos junto dos superiores hierárquicos - procedimento que acabaria por ser seguido pelos Comandantes operacionais respectivos.

    Com efeito - e julgo não ter até agora vindo a público - os Comandantes do Regimento sitiado (Tenente-Coronel Leal de Almeida) e dos Para-quedistas sitiantes (Major Mensurado)  dirigiram-se então ao gabinete do General Mendes Dias, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, donde realizaram telefonemas a  diversos oficiais, entre os quais o então Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho (contactado pelo Tenente-Coronel Leal de Almeida) e o Coronel Rafael Durão (com quem o Major Mensurado contactou), factos testemunhados pelo Comandante Ferreira de Gouveia, a quem o Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho tinha solicitado que se deslocasse ao Gabinete do General Mendes Dias, e creio que também pelo já falecido Major Arlindo Ferreira (Força Aérea).

    Tais telefonemas não terão contribuído de imediato para o esclarecimento da situação, nem o facto de terem sido presenciados pelo General Mendes Dias, só tendo havido um entendimento na sequência de intimação do Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, transmitida pelo Comandante Ferreira de Gouveia, no sentido de este dar voz de prisão ao Major Mensurado caso insistisse no propósito de serem retomadas as hostilidades, tendo então este oficial desistido na sequência de mais telefonemas ao Coronel Rafael Durão, assim tornando possível o regresso ao comando local das respectivas Forças - onde creio que terão deparado já com um cenário de apaziguamento entre militares.

    Entretanto eu tinha regressado logo ao taxi cujo motorista tinha acreditado que eu voltaria, e dirigi-me ao gabinete do Chefe do Estado-Maior da Armada (Almirante Pinheiro de Azevedo - com quem eu não contactava desde a tarde de 25 de Abril de 1974), que me recebeu de imediato ao saber que eu tinha observado a situação de perto, e a quem transmiti, na presença do Almirante Filgueiras Soares e do Chefe do Gabinete, Comandante Manuel Martins Guerreiro, o que tinha constatado.

    Ainda assisti à reacção do Almirante Pinheiro de Azevedo, telefonando logo para o General Costa Gomes, Presidente da República, dando-lhe conta do que acabara de saber, mas retirei-me logo a seguir, para de tarde regressar à minha Unidade, no Alfeite, para onde tinha voltado após em Julho de 1974 ter solicitado o fim da minha presença na Comissão de Extinção da DGS/PIDE (por razões que oportunamente esclarecerei nestas páginas).

    À noite, já em minha casa, fui surpreendido por uma solicitação de convocação urgente no Instituto de Defesa Nacional, onde se realizava uma Assembleia do Movimento das Forças Armadas - aliás com a presença de diversos militares a ela não pertencentes de direito - a fim de explicar as razões pelas quais tinha estado junto ao RALis, e os termos da minha intervenção.

    Esquecendo os termos talvez algo inquisitoriais de tal solicitação, e perante um silêncio profundo dos participantes, aproveitei para reiterar os princípios pelos quais tinha vindo a pautar a minha atitude: acreditar que o regime político do "Estado Novo" só poderia tombar na sequência de um golpe-de-estado executado por oficiais que tivessem em mente a instauração da democracia; que uma vez conseguido tal objectivo os militares deviam retirar-se do exercício do poder político e colaborar na respectiva consolidação; e que nessa perspectiva se deveriam realizar no prazo previsto as essenciais eleições para a Assembleia Constituinte.

    Já estávamos na madrugada do dia 12 de Março.

    Não esperei por comentários, tendo saído logo da sala, recordando-me que o então Tenente-Coronel Loureiro dos Santos e outro oficial da mesma patente foram esperar-me para me felicitar dizendo-me que tinha sido corajoso ao fazer aquela intervenção numa assembleia que tinha estado a decorrer em termos altamente emocionais.

    Devo acrescentar que o General Costa Gomes, alguns meses mais tarde, me disse que eu tinha proporcionado melhores condições, com as minhas palavras em favor da realização das eleições, para que ele tivesse afirmado perante aquela assembleia que as eleições se realizariam no prazo previsto.

    Um breve comentário sobre as circunstâncias que terão determinado a tentativa de golpe-de-estado, cuja génese ainda está por ser cabalmente esclarecida, e que foi atribuída à difusão de uma lista de personalidades a eliminar no quadro do que ficou conhecido como um projecto de "matança da páscoa": caso tal intenção e lista existissem, os "derrotados" teriam sido fisicamente suprimidos, o que não ocorreu, pois ao que me relataram quanto ao decorrer do início da Assembleia de militares na noite de 11 para 12 de Março de 1975 apenas um obscuro oficial se pronunciou naquele sentido, sem qualquer adesão dos restantes.

    Por outro lado, e a terminar: parece inacreditável como é que um conjunto de oficiais de alta craveira profissional, encabeçados pelo então General Spínola, "organizou" uma tal tentativa de golpe militar sem qualquer consistência...

    9. Março.2015.