40 anos depois, um notável documento de Christian Andersen:


Notável testemunho de um participante no "25 de Abril".

Faleceu há dias o Eng.º Christian Andersen, um dos muitos participantes menos conhecidos no movimento militar de 25 de Abril de 1974, e que há pouco mais de um ano tinha escrito, a pedido dos soldados que então comandava, o seu testemunho a propósito da época que viveu.

Revela-se-nos como uma personalidade generosa e cativante, que não hesitou em se envolver num golpe militar tendente a terminar com um regime político em que a liberdade estava cerceada, sem outros propósitos ou ambições de fama ou proveito, e cuja generosidade ressalta bem do tocante documento que a seguir se transcreve: 

O 25 de Abril na primeira pessoa

ANTECEDENTES: O que terá levado um jovem de 28 anos, de família bem instalada na vida, casado e já com 3 filhos, que nunca teve grandes iniciativas revolucionárias (nem acreditava nelas!) a entrar numa revolução?

Muitas vezes me interroguei e reflecti sobre esta questão. O que é facto é que entrei de alma e coração nessa revolução, sem hesitações, embora ciente de que eu, a minha família e amigos iriamos perder privilégios, que seria uma revolução sangrenta (previam-se pelo menos uma semana de combates!) e que o resultado ainda era incerto, tanto mais que sabíamos que a Pide tinha conhecimento do golpe.
Nós somos, em cada momento, a soma daquilo que aprendemos e vivemos até essa altura. E atribuo muita importância há alguns factores específicos:
A minha ascendência dinamarquesa. De facto o meu pai foi dinamarquês até muito tarde, só se tendo naturalizado Português já eu era maior. Eu podia até ter escolhido a nacionalidade dinamarquesa, o que não fiz (alguns dos meus familiares optaram por se tornarem dinamarqueses) mesmo sabendo que com essa opção teria que fazer o serviço militar, o que acarretaria em média 3 anos sem trabalhar na minha profissão e provável ida ao Ultramar com riscos de ter de combater. Mas de facto, nunca tendo ido à Dinamarca nem sabendo falar dinamarquês e gostando muito de Portugal – já, nessa altura não tinha dúvidas de que era A MINHA TERRA! – não me fazia sentido deixar de ser português, só para fugir às chatices e riscos de uma guerra colonial, mesmo não concordando com ela. Esta minha escolha também teve muita importância em opções futuras: já que tinha escolhido ser português, então não teria lógica que não tentasse ser sempre um bom português!
Por outro lado o meu pai transmitiu-me uma série de valores de honradez, respeito aos outros, etc… que me conseguiu passar. Ele tinha sobretudo uma crença, que eu herdei, que a nossa passagem pelo Mundo não faria sentido nenhum se não o deixássemos melhor do que quando cá chegámos. E que se queríamos que o Mundo se tornasse melhor eramos nós e não os “outros” que tínhamos que lutar por isso. Alguns destes valores tenho muita dificuldade em vislumbrar nos meus conterrâneos: para muitos portugueses, quando as coisas não estão bem a culpa será sempre de terceiros (o Estado, o patrão, a Lei, etc…) e eles não podiam nem podem fazer nada para ajudar a resolver os seus problemas. É o nosso fado!
Outro antecedente que teve muita importância em tudo isto: a minha educação escolar ter sido determinantemente conseguida pelos Jesuítas: dos 8 aos 17 anos estive, em regime de semi-internato (entrava às 7h e saía às 19h) no colégio S. João de Brito. Aí tive franco contacto com a pobreza dos bairros da lata, pois eramos convidados a visitar e ajudar as pessoas que viviam no Bairro da Musgueira, o maior bairro da lata dos arredores de Lisboa. Portanto constatei brutalmente que o mundo simpático e familiar onde eu vivia, e que o Regime nos vendia como sendo semelhante ao da maior parte dos portugueses, era uma enorme e terrível mentira! Na Musgueira vi uma enorme miséria material e humana: a Polícia não ia lá, não havia qualquer tipo de saúde, ensino, recolha de lixo ou qualquer outro tipo de apoio, com excepção de uma missão católica e das conferências vicentinas. As “casas” eram um espaço com lama, sem água, nem electricidade, nem esgotos onde as pessoas se amontoavam na maior promiscuidade tornando os termos pedofilia, violência, prostituição aos 10 anos, roubo, etc… meros adjectivos do quotidiano da maior parte daquela gente, sujeita à exploração mais ignóbil por alguns lideres locais, autêntica rede mafiosa de que ninguém conseguia fugir. Era a face negra do Regime que urgia mudar.
Os Jesuítas tiveram também uma influência muito importante na minha educação, pois tendo um ensino excelente, tanto técnico como humano e religioso, ajudaram-me a ser um tipo com curiosidade de conhecer a verdade (tirei alguns cursos superiores) e um crente profundo. Acreditar que a felicidade se alcança quando nós amamos o próximo ajudou-me muito na opção final pela revolução: por muito difícil que seja de acreditar também foi uma decisão de Fé e de Amor! Só tenho pena é que tantas vezes eu não consiga, por preguiça ou egoísmo, ser coerente com a minha Fé!
Quando entrei na Faculdade vivia-se em pleno as lutas académicas da época marcelista. Também andei em algumas dessas manif, mas sobretudo porque era divertido andar a chatear os polícias e depois fugir deles. No entanto nunca consegui levar muito a sério os meus colegas ”revolucionários” porque só consegui ver neles uns burgueses pseudo-progressistas que,  embora vivendo à custa de um sistema, pretendiam impor-lhe  teorias importadas, que não percebiam na totalidade e muito menos nas suas consequências. Apenas ansiavam ter um grande protagonismo e, como por várias vezes constatei, o seu grande amor ao Povo, tão violentamente propagado, limitava-se ao convívio com o seu pequeno grupo.
Casei-me no dia em que fiz 21 anos, tendo ido logo trabalhar para a Alemanha, em condições um pouco melhores do que as dos nossos emigrantes, mas mesmo assim de algum sofrimento pela saudade de todos os que cá ficaram e do Sol que nunca vi enquanto lá estivemos. Serviu no entanto para perceber a riqueza que uma sociedade muito organizada pode gerar, mesmo sem trabalharem muito, como era o caso do sítio onde trabalhámos. Também serviu para aumentar o meu amor a Portugal e consolidar o meu casamento. Apenas durou 4 meses este período na Alemanha, tendo regressado a Portugal para continuar o curso. Fomos vivendo de apoios familiares e de biscates vários, que não davam tempo para vivenciar qualquer vida académica, revolucionária ou não.
Acabei o curso e comecei a trabalhar, pois só fui chamado para a tropa após menos de um ano depois de ter acabado o curso, por razões que nunca cheguei a entender. Profissionalmente tudo correu muito bem e cheguei a ganhar bem. Entretanto tive três filhos.
Vivia-se em Lisboa um clima de grande e quase livre discussão política, apesar do período marcelista ter sido o período da nossa história recente com o maior crescimento da economia. Foi um período importante porque cimentei muitos conceitos políticos e económicos.
Quando tudo estava a correr bem fui chamado para Mafra! Foi um enorme balde de água fria, pois já quase me tinha esquecido dessa possibilidade! E uma revolta também: estava já com três filhos e passava de uma bom nível de vida para não ganhar nada em Mafra.
Ao fim de 3 meses em Mafra (1º ciclo de cadete), soubemos todos as nossas futuras especialidades para onde iriamos. Fui para Comandante de Companhia! Até chorei: em vez de 2 ou 3 anos num quartel da Metrópole, ou em qualquer cidade do Ultramar como alferes, situação que provavelmente me permitiria continuar também a trabalhar em part-time, iria ter garantidamente guerra no mato e uma comissão de quase 5 anos. É evidente que aqui a minha revolta se tornou mais objectiva, mais consistente. No nosso pelotão dos futuros CC tentámos quase todos chumbar (iríamos para Cabo Miliciano), pois assim talvez pudéssemos estar menos tempo na tropa: respondíamos mal nos testes, falhávamos os alvos, gozávamos os oficiais que nos comandavam etc…, enfim fazíamos tudo ao contrário, caindo às vezes em situações engraçadíssimas. Eu até consegui que a minha classificação fosse apenas de 5 valores em 20, mas o Sistema resolveu facilmente o problema: deu a todos mais 6 valores tornando o nosso pelotão aquele que teve a média mais alta de Mafra!
Durante 2º ciclo em Mafra no pelotão dos futuros Comandantes de Companhia, quase todos fervilhavam de revolta, e eu mais ainda porque tinha uma família para sustentar, tendo a minha mulher começado a trabalhar para minorar esse problema. Aí formámos um pequeno grupo de colegas (Miguel Amado, Santos Jorge e Luís Pessoa ) cujo motivo de conversa era essencialmente o estado da nação e o nosso descontentamento. Foi este grupo a génese da minha entrada para o Movimento das Forças Armadas.
Depois deste 2ª ciclo em Mafra, fomos todos para uma zona de combate durante 4 meses: um estágio!  A mim calhou-me uma zona perigosa da Guiné: o Saltinho, numa companhia que já tinha 20 mortos. Fui confrontado com guerra a sério (estive algumas vezes debaixo de fogo!) e com as dramáticas consequências dum colonialismo cego, ao mesmo tempo que ganhei algum sentido de responsabilidade em relação à população colonizada: além de ter comandado um grupo de combate de ex-comandos nativos, tive que dar protecção a uma mulher, a primeira mulher do Cherne Rasshid (o emir islâmico mais respeitado da Guiné) a Mámá Fatmat! Tive muitas oportunidades de conversar com ela e nestas conversas ela, embora iletrada e sem nunca ter saído daquela tabanca, mostrou uma sabedoria de vida que me espantou e admirei profundamente: deixei de ser racista que (como todos os portugueses) julgava nunca ter sido. Também trouxe da Guiné um conhecimento importante: embora contra toda a situação do regime e do seu colonialismo iria ter uma Companhia à minha responsabilidade (180 homens), que teria que preparar o melhor possível para a guerra, para bem da sua salvaguarda.
De volta à Metrópole (ou ao puto como lá se dizia!) fiz um curso para Capitão em Mafra e depois andei uns meses largos a não fazer quase nada por alguns quartéis.
Até que fui chamado a comandar uma Companhia de instrução no quartel de Abrantes, da qual sairiam os soldados da minha futura companhia! Foi um primeiro contacto com um problema grave: a maioria destes soldados era, com o seu trabalho, o sustento de suas casas numa pobre economia agrícola e, enquanto estivessem na tropa ganhariam muito pouco. E sendo eles maioritariamente da Beira Alta e de Trás-os-Montes não tinham a menor hipótese, nem em termos de tempo, nem em termos de dinheiro, de ir a casa passar os fins-de-semana! Acabei por experimentar implementar um esquema de “baldas” que funcionava assim: dividi a companhia em três partes iguais e cada um desses três terços iam a casa, rotativamente de três em três semanas, passar um fim-de-semana de 5/6 dias, sendo a instrução muito mais intensa para compensar. Nunca percebi como é que tudo correu tão bem e eu nunca fui preso. E não contava com o apoio ou conivência de ninguém dentro do quartel para além, obviamente, de todos os graduados e soldados da minha companhia.
Quando acabou a 1ª fase da instrução, juntaram-se os especialistas e formou-se a minha companhia – a companhia independente C. Caç. 4246 – a quem ainda demos instrução em Abrantes e depois fomos para S. Margarida fazer o chamado IPO, que era a instrução operacional definitiva, de onde saímos para o 25 de Abril.
A REVOLUÇÃO:
Este período em Sta. Margarida foi riquíssimo em convívio e troca de impressões entre todos os soldados, mas sobretudo com os graduados, sobre a política em Portugal. Naturalmente como ali ninguém estava de boa vontade, depois do medo e hesitação inicial, a comunicação correu fácil e solta. Entretanto começaram reuniões com outros militares, em que de St. Margarida ia o Luís Pessoa e eu (mais ele que eu, que já tinha 3 filhos e preferia ir a casa), que tomaram um sentido crescentemente conspirativo até chegar ao ponto de ser aprovado a vontade de fazer a Revolução. Tínhamo-nos comprometido! Éramos revolucionários! Esta consciência de que nos tínhamos comprometido numa potencial revolução foi acontecendo ao longo de Março/Abril, mas a confirmação de que iríamos fazer um golpe de Estado foi apenas pelo dia 15/18 de Abril. Curiosamente, o golpe falhado das Caldas em 16 de Março em vez de desanimar até entusiasmou, pois foi sentido como um golpe muito sectorial (spinolistas apenas) e por isso muito pouco abrangente, tendo sido por isso que falhou, mas serviu para mostrar que o Regime estava fraco! Se muitas vezes senti medo sobretudo pela minha família, também é verdade que se vivia um clima de algum inebriamento e, já perto da data, soube que um dos organizadores era o meu cunhado, o major Sanches Osório, o que muito me reconfortou, pois conhecia-o bem e sabia-o pessoa de bem.
Naturalmente que esta última semana antes do 25 de Abril foi de preparação do golpe e de nós próprios. Embora nunca tenha tido consciência de ter manipulado os meus soldados, contava desafia-los para vir comigo, esperando que alguns deles assim o quisessem fazer e que os restantes se mantivessem calados e portanto é natural que também nesta semana tivesse intensificado as discussões politicas na Companhia.
Entretanto o Pessoa foi a uma reunião onde lhe confirmaram que a data mais provável seria o dia 25 de Abril, a pré-confirmar pela emissão de uma canção popular ”E depois do adeus” cantada pelo Paulo de Carvalho nos Emissores Associados de Lisboa pelas 23h do dia 24 de Abril. Se essa canção fosse para o ar deveríamos preparar tudo para começar a Revolução, cujo início seria marcado pela agora famosíssima canção do Zeca Afonso “Grândola, vila morena”. Ainda hoje fico emocionado quando a ouço! Era uma canção proibida pela Censura e que sendo emitida pela Rádio Renascença pouco depois da meia noite confirmaria que a Revolução não tinha sido abortada e portanto arrancaríamos. A nossa ordem de marcha foi ocupar a ponte de Vila Franca, para impedir o Regime de a tomar e ao mesmo tempo impedir os tanques de Santarém de chegar a Lisboa, caso eles não passassem para o nosso lado. A companhia do Pessoa (ou os soldados que ele conseguisse convencer) iria tomar os emissores do Porto Alto, centro de retransmissão, que estando nas nossa mãos impediriam o Regime de falar pela Rádio para Portugal inteiro. Confesso que senti uma pontinha de inveja com a missão aparentemente tão fácil que lhe tinha cabido comparada com a nossa: enfrentar os tanques?!Também fiquei a saber o nosso código rádio para falar com o nosso Comando na Pontinha: Charlie 18. Fomos também avisados que as forças da GNR não estavam do nosso lado, pressupondo-se que permaneceriam fiéis ao Regime e que poderiam opor-se à nossa marcha para Lisboa.
Durante todo o dia 24 os nervos foram imensos! Aproveitei para me informar como poderia roubar as viaturas, rádios, munições e armas, pois todos estes equipamentos, depois de cada dia de instrução eram entregues nos respectivos paióis e armazéns. Nada ficava na nossa posse: consegui sonegar uma pistola- era todo o armamento que eu tinha para fazer uma Revolução! Verifiquei com enorme apreensão que embora existissem bazucas em Sta. Margarida não havia munições para elas. E as bazucas eram as únicas armas que eu conhecia capazes de parar um tanque! Se de facto tivéssemos que abrir fogo contra os tanques, melhor seria que o fizéssemos com fisgas, pois assim talvez os tanques se rissem de nós e não dizimassem o meu pessoal. O Pessoa disse-me (talvez só para me descansar) que nos iríamos encontrar na Ponte da Golegã com uma coluna, que viria da Engenharia de Tancos e que levaria muita munição para nós.
Quando ouvi o “E depois do adeus” chamei os graduados (que já dormiam) para lhes dizer que iríamos ter uma instrução nocturna pouco depois da meia-noite e que portanto avisassem os seus soldados para estarem prontos pela meia-noite junto a uma caserna. Colei o meu ouvido à telefonia com crescente nervosismo, até que pela meia-noite e vinte lá apareceu o Grândola! Fiquei gelado: era agora, já não haveria retorno possível! Mas, como sempre acontece em momentos de acção, passou-me o nervosismo: sabia o que tinha que fazer!
Dirigi-me ao local onde os soldados e graduados me esperavam e falei-lhes explicando-lhes que para mim tinha chegado a hora de me levantar contra este Regime e que iria para Lisboa entrar numa Revolução! Quem quereria juntar-se a mim, avisando que poderia ser uma semana complicada? Esperava que pelo menos uma dúzia se me juntassem, mas aconteceu uma coisa inacreditável: todos deram um passo em frente! A emoção tomou conta de mim, mas ao mesmo tempo um medo enorme: para onde estava eu a arrastar todos estes jovens? Graças a Deus estava escuro e eles não puderam ver bem a minha cara! O único que não foi connosco foi o 1º Sargento Pinto, porque achei que sendo ele profissional eu não tinha o direito de lhe dar cabo da carreira, caso a Revolução não vingasse. Tenho a impressão que nunca me perdoou eu não o ter chamado.
Não havia tempo para grandes dúvidas: fui ao parque das viaturas e disse ao soldado que vinha levantar viaturas para uma instrução nocturna. Ele não acreditou, porque não tinha ordem nenhuma nesse sentido: onde estava a minha autorização? Mostrei-lhe a minha pistola e ele considerou que seria uma autorização suficiente! As viaturas capazes de sair eram muito poucas e por isso lá fomos 120 pessoas penduradas em meia dúzia de viaturas arrombar os paióis e armazéns de onde tirámos as G3, granadas, rádios, rações de combate, etc…
Lá arrancámos para Lisboa, já seriam uma duas e meia da manhã, sem grandes incidentes, até à Ponte da Golegã, onde nos encontraríamos com a Grande Força da Engenharia cheia de oficiais superiores, soldados a valer e sobretudo: muitas armas e munições antitanque! Todos estes sonhos nos deram algum descanso! E de facto começámos a vislumbrar uma longa procissão de faróis ao longo da ponte, talvez umas 40 viaturas: eram eles! Estávamos safos!
Quando pararam ao nosso lado eu não queria acreditar: as Berliets vinham quase vazias de pessoal (ao todo seriam talvez uns 20) e quanto às tais munições antitanque, nada! Apenas tinham trazido bastantes cunhetes de munição para G3, da qual já tínhamos bastante.
Não havia tempo para lamentações e eu não queria que os soldados sentissem a fraca organização em que estávamos envolvidos. Lá seguimos para Vila Franca. Pelo caminho os GNR não nos hostilizaram, pelo contrário, os poucos que vimos ajudaram a nossa marcha regulando o pouco trânsito que havia àquela hora.
Chegámos à portagem da Ponte de Vila Franca ao alvorecer.
O dispositivo foi montado, tendo em conta que não tinhas mais para opor aos tanques do G3. Entretanto achei melhor acabar com as portagens, para evitar algum eventual engarrafamento. Detectámos um oficial superior da aviação dentro de um VW: era o comandante da base do Montijo (salvo erro…) e que decidi que ficasse ali “preso”, sobretudo incomunicável, o que suportou com razoável bonomia: julgo que já teria sabido de qualquer coisa, pois não ficou nada preocupado.
Pelas 10h fui contactado, via rádio, que o movimento praticamente não estava a ter oposição e que algumas unidades mais já tinham passado para o nosso lado, incluindo os tanques de Santarém. Uf! Que alívio!
Devo dizer que embora a portagem da ponte de VFX não fosse zona própria para piões, começaram a aparecer algumas dezenas de civis, que queriam saber o que estávamos ali a fazer, e que depois de se lhes ter sido dito que era uma revolução para derrubar o regime, o seu apoio foi bastante generalizado e inequívoco, embora ainda com algum temor.
Pelas 11h recebemos ordem para irmos ocupar o Aeroporto, pois a EPI de Mafra não teria efectivos capazes de o fazer em condições. Assim fizemos, juntámos o pessoal todo e arrancámos em direcção a Lisboa.
À entrada em Lisboa, junto ao actual Ralis (naquela altura a auto-estrada não estava tão rebaixada, nem existiam aqueles viadutos e o Ralis dava directamente para o fim da auto-estrada) estava montada uma barricada para nos impedir de passar! Não fiquei muito preocupado apesar de ser um obstáculo inesperado (o Comando tinha-nos dito que não sabia de nenhum impedimento na marcha para Lisboa), o que é facto é que a forma como a barragem estava montada era completamente inútil para impedir uma coluna com a dimensão da nossa: 20 a 30 militares armados de G3 com duas viaturas atravessadas nas duas faixas, as quais nem sequer tapavam completamente a nossa passagem. Era um proforma de quem estava a cumprir alguma ordem, que não lhe apetecia nada seguir: era uma barricada para fingir que se tinha feito alguma coisa. Os meus soldados que iam comigo na viatura mostraram as armas com prontidão, enquanto que os militares da barragem nem nos apontaram as suas armas.
Dirigiu-se-me um aspirante que, suponho, estaria a comandar aquele grupo de militares e estabeleceu-se o seguinte diálogo:
Tenho ordens para não deixar passar – disse ele
E eu tenho ordens para passar! – disse eu
Não serei eu que o vou impedir – disse o aspirante em voz um pouco mais baixa.
No entanto, embora tudo aquilo me parecesse um faz-de-conta, achei que haveria mais do que aquela força e não queria arriscar arrancar e, de dentro do quartel e bem melhor protegidos do que aqueles militares em pé ali na rua, alguém começasse a fazer fogo. Dirigi-me ao aspirante:
Recebes ordens de quem?
Do meu Coronel.
E onde está ele?
Está ali junto ao muro do quartel do lado de dentro.
Então vamos falar com ele! – disse eu.
Lá fomos os dois a pé, com 5 ou 6 dos meus soldados, até ao muro e o tal comandante estava dentro duma guarita. Só lhe via os olhos! Tive a sensação de estar a falar com alguém entalado dentro de um marco do correio! Com ele tive esta conversa:
Então meu coronel, o que se passa?
Tenho ordens para não deixar ninguém passar para Lisboa e portanto não pode passar!
E eu tenho ordens para passar e vou passar!
Mas tem ordens de quem?
Do Comando da Revolução!
Ele calou-se um pouco e disse qualquer coisa do tipo: não recebi instruções para este caso.
Eu disse-lhe: meu Coronel, vou passar a bem ou a mal e, se preza os seus soldados que estão naquela barragem, é melhor dizer-lhes para se afastarem, e voltei-lhe as costas, tentando aparentar uma calma que estava longe de sentir.
O aspirante que voltou comigo estava todo entusiasmado. Disse-lhe só para afastar um pouco as suas viaturas para nós podermos passar, o que fez prontamente, e nós seguimos para o Aeroporto. Este episódio, nessa mesma altura, fez-me sentir que o Regime estava podre e que ninguém se iria opor decididamente à nossa revolução. Pelo que fiquei bem mais descansado!
Chegados ao Aeroporto, já lá estavam alguns militares (uma dúzia?), que ficaram visivelmente muito aliviados quando viram chegar a minha Companhia. De facto eramos uma força considerável – bem mais de 100 militares – o que permitiria montar um perímetro de segurança às pistas, torre de controlo e edifícios. A pequena força que lá encontrámos, sendo poucos, tinha armamento bem melhor que o nosso: entre outros, dois canhões sem recuo e com munições!
Pouco tempo depois o oficial (da EPI?) que estava na torre de controlo veio avisar-me que se estavam a aproximar 2 aviões vindos de Tancos, provavelmente cheios de paraquedistas, os quais ainda não se sabia de que lado estariam. Fiquei muito preocupado: se os aviões estivessem cheios, teriam o dobro dos nossos efectivos e com um treino operacional muito superior ao nosso. Se os deixasse aterrar estávamos vencidos, com um número de mortos certamente elevado! Só vi uma hipótese: colocar os canhões no alinhamento da pista e fazer explodir os aviões ainda em fase de aterragem. Enquanto estava discutindo esta hipótese com o tal oficial, chegou a notícia, logo depois confirmada pelo Comando, que eles estavam do nosso lado. Graças a Deus! Lá aterraram e apareceram umas viaturas que os levaram. Quando o seu Comandante me cumprimentou eu até corei só de lembrar o que lhe estava a preparar, do que julgo que ele nunca teve conhecimento.
Permanecemos no Aeroporto, julgo eu, todo o resto do dia 25, como o 26 e até o 27. Foi aqui que fomos tendo notícias do desenrolar dos acontecimentos: prisão do Américo Tomaz e rendição do Marcelo Caetano ao Spínola. O aparecimento do General Spínola neste episódio foi-me muito surpreendente, pois sabia que não só o MFA não pretendia ser liderado por ele, como ele não se tinha mostrado muito interessado. Só mais tarde é que vim a saber da história da rendição do Marcelo no quartel do Carmo.
Durante estes dias em que estivemos no Aeroporto muita gente veio festejar, gritar pela Revolução. Enfim a Revolução estava claramente ganha, o Regime tinha caído e a alegria tinha tomado conta dos portugueses. Posso dizer que julgo que nunca comemos tão bem na tropa como enquanto aqui estivemos, tantos eram os presentes e apoios que recebemos. Lembro-me que os festejos terão tomado uma dimensão talvez exagerada, que temi perder o controlo da Companhia. Mas enfim nesta fase a prontidão militar já não seria tão prioritária e os meus rapazes, depois de tanta tensão pelo que passaram, bem mereciam alguma recompensa. Como se a glorificação de todos os populares que ali foram fosse pouco, soube posteriormente que algumas senhoras entusiasmadíssimas, também decidiram festejar com alguns dos meus soldados de modo bastante mais íntimo. E viva a Revolução!
E depois?
Tenho agora, passados 40 anos, dificuldade em me lembrar como se passaram os dois dias seguintes até ao dia 1 de Maio. Lembro-me de que fomos para o quartel da Pontinha, onde ficámos aquartelados e pouco mais me lembro.
Lembro-me de ter encontrado o meu cunhado, o Sanches Osório, e caímos nos braços um do outro contentes por nos vermos do mesmo lado e vitoriosos!
Lembro-me de ter ido a minha casa (os alferes  Martins e Fernandes também me acompanharam) para dar um grande beijo de alívio e vitória à Isabel e outro aos filhos. Ela ficou horrorizada, porque deixámos as metralhadoras que trazíamos na cadeira da entrada, como quem larga a gabardine. E de facto com 3 filhos de 4 a 7 anos, poderia ter acontecido alguma tragédia. Mas com o nosso entusiamo e porque aquelas ferramentas já se tinham tornado parte de nós, facilmente esquecemos as mais elementares regras de segurança.
Cabe aqui uma pequena referência à minha Grande mulher da minha vida: a Isabel, sempre me apoiou, apesar do medo que sofreu pela nossa família. E de facto o irmão da minha sogra, foi preso por engano pelo COPCON e acabou por morrer por falta de assistência médica na prisão, em Dezembro desse ano.
A Companhia recebeu a ordem para controlar a zona da Baixa, no dia 1 de Maio, pois ali – sobretudo no Rossio - se iriam verificar as maiores manifestações e prováveis tumultos. Ainda estávamos numa cultura que nos dizia que se o povo fosse deixado à solta seriam inevitáveis grandes problemas de ordem pública.
Nenhum de nós tinha qualquer experiência policial para este género de eventos: qual seria a melhor táctica? Como evitar abusos (assaltos a lojas, carteiristas, etc…) com tão poucos soldados?!
Optámos por nos dividirmos em vários grupos: um para cada canto do Rossio, mais dois ao longo dos lados e os restantes (onde eu fiquei) no centro do Rossio, na base da estátua do D. Pedro IV. Naturalmente que foi um dia agitado, um bocado de nervos pois o Rossio estava completamente cheio de pessoas (não sei quantas dezenas de milhares de pessoas seriam, mas estava completamente lotado!). Apesar de todos os receios, tudo correu lindamente e na maior ordem. Foi fantástico!
Recordo-me de alguns episódios engraçados desse longo dia de festa da Democracia: talvez o primeiro grande festejo em Democracia. Uma passagem divertida foi a descida da Av. da Liberdade para chegarmos ao Rossio, pois estava tudo entupido com automóveis que não conseguiam passar no Rossio: um engarrafamento louco; disse ao condutor para ir para cima do passeio e assim descemos a avenida sem tocar no alcatrão. Grandes vivas dos cidadãos presentes e os meus soldados entusiasmadíssimos - não só pelo momento de glória, mas por estarmos a fazer uma coisa extraordinariamente proibida: andar de carro por cima dos passeios. A segunda coisa de que me lembro foi de um senhor já com alguma idade de boina (vim depois a saber que era o Raul Rego) que veio ter comigo quando já estávamos no meio do Rossio, muitíssimo comovido, agarrou-se a mim a chorar a dizer: obrigado, obrigado, obrigado… durante uma boa meia hora, intercalando com muitos ”viva a República!”. Na altura não percebi o alcance destes “vivas!”, pois para mim a República era apenas um Regime não monárquico, que em Portugal tinha oportunisticamente ganho o poder através de um regicídio e que pela sua incapacidade tinha gerado as condições para que a ditadura tivesse depois vindo a ganhar o poder; mas para ele e para muitos da sua geração seria um sinónimo de democracia. Outra situação curiosa foi a de alguns jovens que gritavam alguns slogans, mas ninguém os ouvia, propus-lhes que viessem para o pé de mim (estava num ponto alto do pedestal da estátua) e emprestei-lhes o meu megafone, que na altura já era desnecessário: passaram de um certo temor para uma enorme alegria e aumentaram a produção, já de si grande, de slogans e vivas – eles eram o futuro MRPP que, embora de extrema-esquerda, foram os únicos que se opuseram á loucura gonçalvista no seu início.
Depois deste dia de entusiasmo fomos mandados para casa e/ou para o quartel e, o Pessoa e eu fomos para S. Margarida para pormos em ordem a região militar Centro: eufemística forma de dizer que deveríamos “limpar” os quadros militares dos que não eram afectos ao Movimento. No início não percebi completamente o que andaria eu ali a fazer, mas o Pessoa sim, estava muito à vontade naquele papel. Como eu pensava que a Revolução estava já ganha e consolidada não vi razão para sanear ninguém que tivesse um mínimo de competência, só porque não tinha apoiado objectiva e claramente a Revolução. Por este critério ter-se-ia que sanear a maioria da população, que de facto nos apoiou entusiasticamente no dia 26, mas que antes de 24, por medo ou comodismo, se manteve complacente com o Regime. Opus-me portanto ao saneamento de muitos dos oficiais superiores da região Centro (dentro deles o seu comandante – Morais?), só tendo concordado com um caso de um coronel alcoólico que passou à reserva. Por isto fui mandado para casa e depois, nós todos fomos para Angola, cumprir a nossa comissão.
Não me alongarei neste memorial dos meus sentimentos nesta época tão rica de acontecimentos, pois já vai muito longa, pese embora que faria sentido um relato sucinto da ida e estadia da nossa Companhia em Angola, pois está cheia de acontecimentos ligados e consequentes com a Revolução. Destes acontecimentos só confesso que foi para mim uma honra e uma riqueza enorme ter sido o Capitão da C. Caç 4246, durante a Revolução do 25 de Abril e depois, durante a nossa comissão em Angola.
Tudo o que relatei terá falhas importantes e até erros, só desculpáveis pelos 40 anos já passados. Deles peço desculpa e um bem hajam pelo que fizeram comigo e apesar de mim.
Gostava de ter braços suficientemente longos para vos abraçar a todos!

a) Christian Andersen
                Cap.Mil.

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(Texto também publicado em : 
 http://zekim.blogspot.pt/2014/04/ccac424673-uma-companhia-de-abril.html  )
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