"Ponto de vista": UE e Rússia - situações estranhas.


  UE e Rússia - situações estranhas.

Bruxelas, 22 de Outubro. Passa da 1 da manhã. No Conselho Europeu são concedidos 5 minutos a Theresa May apenas 5 minutos para intervir, em último lugar (!), na reunião que formalmente tinha começado na manhã do dia 20 e em que uma larga maioria dos dirigentes europeus tinha primado por intervir em francês. Penosamente, Theresa articula algo que notoriamente não suscita a atenção do Conselho - é sobre os termos da negociação da saída do Reino Unido, a famosa Brexit.

Dizem-lhe diversos membros: tal não está na agenda do Conselho - e além disso só iniciaremos conversações quando houver um pedido formal de saída, invocando o (já famoso) art.º 50º do Tratado da União - e Theresa resigna-se, pois é-lhe recordado que ainda falta discutir o último ponto da agenda: um debate sobre as orientações estratégicas relativamente às relações com a Federação Russa.

Entretanto, chegam as primeiras imagens do porta-avões que, escoltado por significativa força naval, cruza a escassas 200 milhas o canal da Mancha: o já vetusto mas ainda poderoso "Almirante Kuznetzov" em rota que se pressente poder estar dirigida para o porto sírio de Tartus, reforçando assim a presença aeronaval russa no Mediterrâneo oriental, onde há poucas semanas parte da esquadra da Rússia habitualmente navegando no Mar Negro tinha realizado importantes exercícios, impondo também e de facto uma zona de exclusão aérea no espaço circundante a Tartus.

A Rússia tem consciência da fraqueza das suas forças navais de acção intermédia (distantes daquelas em que a projecção potencial de longa distância se exerce por submarinos nucleares e porta-aviões com vectores de transporte nuclear e respectivas forças de escolta, apoiadas em bases de apoio "amigas") e sabe que precisará ainda de pelo menos mais cinco ou seis anos para ter capacidades a nível mundial de intervenção sustentada e superar uma postura secular de potência continental.

E, tendo-se entrado a partir do episódio da implantação do "escudo anti-mísseis" - cuja história de interesses ainda está por desvendar - numa guerra que não é fria mas sim "surda", optou por ir atacando os pontos fracos à sua volta, desde a Geórgia à Crimeia ou de Donetsk à Síria, para firmar pontos de apoio, aproveitando as debilidades da política externa da UE, e as mudanças de orientação nos EUA, bem como a fragilidade caracterizadora dos últimos meses de exercício da presidência neste país, numa demonstração exímia de aproveitamento das fraquezas e erros de outras potências.

Provavelmente bem gostaria de ter uma porta mais aberta no Báltico - onde já têm ocorridos pequenos actos provocadores de alguma instabilidade (o último dos quais a deslocação "temporária" de mísseis de médio alcance, susceptíveis de atingir Berlim, para Kaliningrado - a "Crimeia do Báltico"), mas tal não parece muito provável

Mestre na identificação de debilidades e do seu aproveitamento até ao limite da não-reacção, os objectivos imediatos de V.Putin parecem ser a obtenção de uma presença estável no Mediterrâneo e de uma voz no Mèdio-Oriente, bem como o reconhecimento tácito da anexação da Crimeia e a negociação de Donetsk em troca de um alívio das sanções económicas, sabendo que tem ainda um ano para jogar à vontade, uma vez que os efeitos da Brexit e das escolhas eleitorais na Alemanha, França, Itália e Espanha só começarão a ter consequências em tal prazo.

Enquanto toda esta movimentação ocorre, a UE lambe as feridas da Brexit e mantem a incapacidade de uma política externa com uma estratégia inconsequente.

Leia-se o comunicado das conclusões do Conselho Europeu de ante-ontem - et voilá.

23.Outubro.2016