"Ponto de vista": Revendo a colonização portuguesa.


   Revendo a colonização portuguesa.

No passado dia 8 de Fevereiro, no histórico espaço da Biblioteca Central da Marinha (Mosteiro dos Jerónimos), participei na apresentação de um livro do Professor Doutor João Moreira Freire sobre a colonização portuguesa na Guiné - 1880-1960, e que foi editado pela Comissão Cultural da Marinha.

Eis o texto que serviu de base à apresentação.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~


Apresentação do Livro “A colonização portuguesa da Guiné -1880-1960” (Prof. João Freire), por Luís Costa Correia.


Princípio de Outubro de 1973.
Sim. 1973.

Marcelo Caetano, Presidente do Conselho de Ministros, recebe em encontro de trabalho um alto funcionário da Administração Pública, que se faz acompanhar do seu colaborador de maior confiança.

E, para grande surpresa destes, não inicia a -  naqueles habituais encontros    -   análise do tema agendado.

Começa então um longo solilóquio, certamente proporcionado pela grande confiança que depositava naquelas duas pessoas.

E desfia assim uma profunda reflexão sobre o estado do país, centrada sobre as dificuldades e dúvidas que sentia quanto à evolução da questão ultramarina, e em que transparecia uma enorme angústia sobre o que considerava ser a sua incapacidade para encontrar um rumo que pudesse levar a uma solução compatível com o seu pensamento político, dados os problemas com que o país se debatia tanto no plano internacional como no interno.

Longos minutos do que se sentia ser uma catarse, um angustiado desabafo de um homem só.

E, sem solicitar opiniões, inicia a análise dos temas agendados.

Um dos primeiros requeria uma avaliação de posição a tomar daí a um ano.
E quando os seus colaboradores (um deles aliás aqui presente) lhe solicitaram orientação a tomar quando a tal perspectiva,  responde-lhes:

     - Meus senhores, daqui a um ano já não estarei nesta cadeira.

Perguntar-me-ão:
Mas que tem este episódio a ver com o livro do Prof. João Freire?
Tudo.
Aliás, corrigindo, quase tudo.
O grande problema com que o Prof. Marcelo Caetano se debatia era precisamente o de como organizar e preparar uma solução para uma transição de um modelo que o então Presidente do Conselho de Ministros já considerava e temia  vir a ser insustentável – talvez já em curto prazo – para outro ou outros sobre cuja exequibilidade tinha séries dúvidas sobre a sua capacidade, e a de Portugal, de as realizar.

E porquê?
Porque – e como o demonstra bem o Prof. João Freire – a colonização desenvolvida por Portugal foi, aliás tal como as da responsabilidade da maioria dos estados europeus com presença colonial,     tardia, imperial e sem a integração mútua que seria necessária para a construção de novos Estados num sistema em que a presença paritária – obviamente política – de oriundos da África, e oriundos da Europa, seria a pedra de toque para uma evolução harmoniosa, de uma ocupação do poder político para uma transição de cariz democrático.

       Democrático.   Democracia.

Portanto, a palavra-chave - Democracia - para uma transição que se desejaria com poucos sobressaltos.

Que não fosse uma retirada apressada, crismada de descolonização,  mas uma reconstrução do poder político.

Que não se impõe de um momento para o outro.
Para que são precisos anos.
Décadas.

Que teria requerido, após o sinal dado em Tsushima  pela primeira derrota de uma potência imperial europeia face a uma asiática emergente, uma visão também europeia de conjunto que curiosamente parece também faltar agora.

E que tivesse presente que a ocupação de facto dos territórios do interior africano tinha começado pouco tempo antes, após a Conferência de Berlim, em 1885, também escassos  anos antes do Ultimato britânico e do subsequente Tratado Luso-Britânico.

Perguntareis:
Que lugar ocupa então nesta apresentação o livro do Professor João Freire  ?

Também como há instantes afirmei,  tudo.

É que nesta notável e original obra se recorda que a Guiné foi sempre um barómetro das operações de ocupação - assinaladas adequadamente por João Freire, e um micro-cosmos face a outros territórios ultramarinos de maior dimensão, todos eles em que a contradição entre Democracia e ocupação assumia particular importância.

E em que se mostra o papel essencial que a Marinha teve - como não poderia deixar de ser - em todos os territórios por onde Portugal se expandiu, e em particular na Guiné.

Assim, e após uma introdutória retrospectiva histórica e sociológica referem-se as revoltas contra a ocupação portuguesa e a participação da Marinha na respectiva dominação, para depois ser analisado o tempo (entre 1880 e 1910) em que a Guiné - considerada uma “província autónoma” - se adaptou à situação decorrente da extinção da escravatura, seguindo-se a descrição do período em que de 1910 a 1930  o novo regime republicano, rebaptizando-a como “colónia”, dava também origem ao conceito de “indigenato”.

(Como se constata, nem sempre a democracia é lúcida... - mas sendo sempre preferível a uma “ditadura iluminada”.)

E, após esta primeira parte de cariz global, entra o Autor na descrição do papel da Marinha na ocupação efectiva e na consolidação colonial, realçando os levantamentos geo-hidrográficos e a navegação fluvial, para na parte final se debruçar sobre as acções do então designado “Estado Novo” à luz do Acto Colonial e do Estatuto do Indigenato, descrevendo iniciativas de natureza económica, o censo da designada “população não-civilizada” e focando igualmente aspectos relativos a outras colónias, nomeadamente em matéria naval e na de repressão do comércio dos chamados “negreiros” (como se a escravatura devesse estar associada á cor da pele...).

Perpassam os nomes de distintos Oficias de Marinha, entre os quais os de Sarmento Rodrigues e Teixeira da Mota (e diversos outros aqui deveriam igualmente caber - seja-me perdoada a selecção).

E, no final da obra, na excelente síntese conclusiva, o Autor recorda que as guerras da chamada “ocupação efectiva” foram na Guiné mais numerosas e prolongadas no tempo do que em qualquer outra colónia africana - não deixando de referir a importância que a fortíssima repressão da revolta do Pijiguiti teve no eclodir da guerrilha.

Análise oportuníssima, se pensarmos na importância que a oficialidade portuguesa na Guiné, nomeadamente entre as patentes menos elevadas, teve como detonadora de relevo na sublevação militar de Abril de 1974.

E após esta retrospectiva da estrutura deste apaixonante livro, é oportuno voltarmos a olhar para o conceito de Democracia e da sua potencial conflitualidade com o fenómeno da colonização - tema que tal como a Guiné e a Marinha se repete constantemente na obra que nos trouxe ao espaço simbólico deste Mosteiro, tão intimamente ligado à expansão colonial, e assim tão bem escolhido para esta sessão.

Democracia que se constrói, por vezes, lenta e penosamente, e de difícil concretização, como certamente se inferirá das palavras do Prof. Eduardo da Costa Dias,    quando se pretende impô-la sob modelo “ocidental” a uma amálgama de nações – desdenhosamente quase sempre designadas por tribos, e por “indígenas” os seus naturais - quantas vezes vivendo sob tradições de pendor democrático.

Recorde-se assim, e como citado por João Freire, o acto colonial e o estatuto do indigenato – de princípios da década de 1930, já no período em que o chamado “ Estado Novo” se consolidava – em que no seu âmbito se instituía uma caderneta indígena  individual, e no qual – arrojada mudança de nomenclatura – o imposto-de-palhota passava a ser oficialmente designado por “imposto Indígena”, piedosamente acompanhados (no caso da Guiné) por uma benévola “ Comissão de civilização e assistência a “indígenas “.

Tempo esse em que, há apenas menos de 80 anos, o Acto Colonial se referia ao  “Império Colonial português” para,  após o sinal dado pela saída dos britânicos da península industânica, pressionada (não o esqueçamos) por Roosevelt -  o passar a designar por “Ultramar português” e mudar a designação de “Colónias” para “Províncias ultramarinas portuguesas”. E, depois de  Bandung, após as chamadas “independências” concedidas pela França e pela separação da Argélia, e depois do início das sublevações em Angola, Adriano Moreira consegue finalmente a abolição - em 1961 - do Estatuto do Indigenato - abolição que lhe terá custado, entre outros factores, a demissão do seu cargo ministerial...

Tarde demais.

Não para a continuação  das lutas contra a guerrilha, mas para a obtenção de uma sustentada e sentida adesão da grande maioria dos ex-”indígenas” a quaisquer projectos de vivência conjunta com os que eram olhados como ocupantes - quiçá e para usar um expressão da moda actual,  donos daquilo tudo.
E o Prof.João Freire assinala-o bem.

Lenta e penosamente, disse há pouco.

E este livro do Prof. João Freire demonstra, e só por isso (e não só por isso, claro) vale a pena lê-lo,     que a ocupação de facto do interior das colónias africanas não começara 500 anos antes, mas sim há pouco mais de 1 século.

E que a Guiné, microcosmos que era das sociedades africanas do Sahel e da Senegâmbia (como o acentuou o distinto Professor Doutor Eduardo Costa Dias na excelente apresentação que antecedeu a minha) mas também de quase toda a Africa subsaariana, era um exemplar retrato das dificuldades de implantação colonial de um pequeno país europeu, arruinado por diversas vicissitudes das quais as mais recentes advinham das invasões francesas, da separação do Brasil, e da alta instabilidade política subsequente durante dezenas de anos.

Anos em que, como João Freire assinala, a Marinha Portuguesa, com os seus exíguos recursos, desempenhou um papel fundamental na presença em zonas do litoral africano, e também no quadro da luta contra a escravatura imposta nomeadamente pela Marinha Britânica, com as óbvias dificuldades agravadas pelo aumento do interesse das principais potências europeias pela ocupação efectiva e global de territórios africanos, e a que Portugal reagiu com as primeiras campanhas imperiais de, como se dizia, “pacificação”, nas quais o Exército passou a ter um importantíssimo papel.

E foca o Autor também  a hábil estratégia portuguesa de procurar através da expansão por todo o território Guineense, nomeadamente nos seus portos, uma chave para algum controle de navegação  no importante “tandem” Guiné-Cabo Verde.

Daí que a Marinha - e sempre como é referido por João Freire - tenha naturalmente tido um papel de grande relevância na ocupação colonial, normalmente e como não poderia deixar  de ser, através da protecção das feitorias comerciais e portos com os escassos meios de que dispunha, concomitantemente com a defesa das rotas marítimas  e com a extirpação do comércio de escravos.

No caso da Guiné, com a relevante importância  que as condições naturais - fluviais - impunham.

E também com uma lógica maior presença na Administração colonial, tanto na Guiné como nos restantes territórios, que entretanto tinham passado a ser designadas por “Províncias” – aquando dos tempos do ultimato britânico - coincidentes com as profundas reorganizações na estrutura da Armada que o Prof.João Freire aponta.

É pois tempo de concluir este apontamento contributivo para a apresentação deste livro, repleto de elementos que nos permitem chegar a múltiplas conclusões, em que ressaltam as relativas às inevitáveis  contradições entre Democracia e Colonização - e que podem dar origem a compreensível nostalgia (que também senti) entre aqueles que viveram os tempos coloniais.

Porém, em termos retrospectivos, por certo considerarão que muitos factores contribuíram para tal situação, muitos deles desde a noite dos tempos – sendo ao mesmo tempo triste constatarem que em 2015 Portugal deveria ter recordado ao Mundo que, apesar de indignos episódios de invasão e colonização nos outros continentes, a Europa e o Mundo em geral não deveriam esquecer o importante e decisivo papel que Portugal desempenhou no processo de globalização iniciado com a expedição a Ceuta.
Oportunidade comemorativa perdida naquele ano (apesar de alertas oportunamente formulados) – mal grado algumas esparsas comemorações a nível nacional, quase nulas no plano internacional, mas pelo menos com distinta participação por parte nomeadamente da Academia de Marinha (dirigida pelo Alm.Vieira Matias) e do Instituto Dom João de Castro (sob a direcção do Alm.Rebelo Duarte) .

Participação em que foi dado adequado relevo à saga marítima que de certo modo foi iniciada na Guiné tropical.

A Guiné, centro do livro do Prof. João Freire (que caso a história tivesse tido outro rumo antes de 1968 estaria provavelmente aqui como Comandante Moreira Freire, quiçá Almirante Moreira Freire) origina pois uma notável e interessantíssima obra, destruidora de mitos, em que o micro-cosmos africano e o binómio Guiné – Marinha dão uma perspectiva histórica da aventura Marítimo – Colonial Portuguesa, bem como uma análise sociológico-política que abarca evoluções como as que ocorreram desde o comércio de escravos à luta contra os negreiros, desde a tímida instalação em feitorias e entrepostos à penetração e ocupação de posições no interior africano, desde a evolução dos estatutos de dominação às tentativas de atribuição de direitos de cidadania.

E,  sempre presente, a Marinha, nas rotas, nos portos, nos rios.

Nomeadamente nas tropicais águas Guineenses, nas quais naveguei (e quem conhece a minha carreira naval saberá a que refiro...).

Daí talvez o para mim surpreendente convite que me foi formulado para colaborar nesta apresentação, e que muito me honrou até pelo significado em que este espaço - repleto de História - está inserido.

Muito obrigado,  meu  caro Professor e ex-Camarada de Armas.

E que este livro, simbiose da História, da Colonização, e da Marinha nos ajude a melhor compreender o que foi o nosso papel no Mundo, e que nos ajude a repensar o nosso projecto  - centrado sobre o mar ? - enquanto país num mundo em acelerada mutação.

Não devo terminar sem daqui apelar aos altos quadros da Armada aqui presentes para que em situações análogas à presente procurem mobilizar os jovens cadetes e oficiais para, escutando a História, saberem melhor como ajudar a navegar o nosso País em águas procelosas.

Muito obrigado por me terdes escutado.

8 de Fevereiro de 2017.
Luís Costa Correia.