Em 11 de Março de 1975
("Semimórias")
É cíclico.
Em 11 de Março surge sistematicamente nalgumas estações televisivas a reprodução de um episódio que foi marcante na História de Portugal, em que se vêem e ouvem cenas de uma confrontação militar entre Forças de Paraquedistas e do Exército, nas imediações do Regimento de Artilharia Ligeira n.º1 (RAL-1) em Lisboa, enquanto meios aéreos sobrevoam o local.
Entre essas cenas há uma que tem sobressaído na difusão televisiva, e em que se acompanha um diálogo entre os então Capitães Dinis de Almeida (Infantaria) e Sebastião Campos (Paraquedista) no qual participei sugerindo que fossem esclarecer junto dos seus superiores hierárquicos as razões que teriam conduzido a tal episódio.
O facto de eu estar presente naquele episódio (e em traje civil) suscitou alguma curiosidade, nomeadamente por parte dos meus Camaradas d'Armas, em particular da Marinha, pelo que julgo útil voltar a referir as circunstâncias que me levaram a tal presença - até porque creio que o sucedido veio a ter influência "negativa" na minha carreira profissional, pois pairou sobre mim um manto de suspeição aventando-se que eu saberia antecipadamente da existência de uma tentativa de golpe de estado, ou, segundo outras perspectivas, que conheceria os meandros de uma suposta cilada provocatória ...
Eu prestava então serviço na Direcção de Armas Navais, no Alfeite, onde tinha regressado em Julho de 1974 após ter participado 3 meses antes na ocupação da sede da DGS/PIDE, e naquele dia 11 de Março tinha ido a Lisboa participar numa reunião de um Conselho de promoções no Estado-Maior da Armada.
No final da manhã chegaram ao conhecimento dos Oficiais participantes na reunião notícias de acções de meios aéreos contra o RAL-1, transmitidas por familiares residentes perto daquele Regimento, o que levou a que o Almirante Leal Vilarinho desse a reunião por finda.
Dirigi-me então ao vestiário a fim de me desfardar e passar a traje civil, acompanhado pelo capitão-de-mar-e-guerra Falcão de Campos, a quem disse que como se aproximava a hora do almoço não iria de imediato para o Alfeite, tencionando ir tentar ver o que se passava junto ao RAL-1.
E assim procedi, indo à Av.Ribeira das Naus onde tomei um taxi para o local, obtendo o assentimento do motorista para esperar pelo meu regresso.
Dirigindo-me para o local onde avistara militares, constatei que eram Paraquedistas, solicitando então a um Sargento (a quem me identifiquei como Oficial de Marinha) que caso possível me levasse à presença do respectivo Comandante exprimindo o desejo de tentar esclarecer a situação que ocorria (pessoal armado e emboscado junto aos edifícios circundantes ao quartel).
Quando me dirigia ao encontro do Capitão Sebastião Campos vi a algumas dezenas de metros o Capitão Dinis de Almeida (que tinha conhecido em Outubro de 1973 durante uma das primeiras reuniões de Oficiais que viriam a dar origem à sublevação militar de Abril de 1974) que igualmente procurava chegar à fala com o responsável pelas Forças de Paraquedistas, tendo assim sido iniciado o diálogo que viria a ser filmado pelo Jornalista Adelino Gomes - que tal como eu soubera pouco tempo antes da existência de movimentações militares (aliás como a então Jornalista do "Expresso" Helena Vaz da Silva, com quem ainda troquei algumas palavras explicativas após a interrupção das "hostilidades", e que a ajudaram no relato circunstanciado que o seu Jornal viria a publicar).
Durante a troca de pontos de vista e argumentação que conduziu a que os movimentos de natureza militar fossem interrompidos a fim de os responsáveis de ambas as "partes" se dirigirem ao gabinete do então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea no sentido de se procurar esclarecer o que parecia ser um mal-entendido, tive a oportunidade de acompanhar a rápida leitura a que o Capitão Dinis de Almeida procedeu relativamente a uma "Proclamação" do General Spínola que o Capitão Sebastião Campos lhe mostrou, e que era - como o Capitão Dinis de Almeida de imediato classificou - um tosco conjunto de argumentos justificativos de um golpe de estado militar, documento que li na imprensa, mais tarde, e que viria ser reproduzido pelo Coronel (Força Aérea) José Costa Neves em excelente artigo na Revista "Referencial" 139, Nov/Dez.2021.
Sobre o posterior encontro que teve lugar no gabinete do General Mendes Dias darei conta mais tarde do modo como decorreu, dado que dele tive conhecimento através de um Oficial que então esteve presente.
Regressei de imediato ao taxi, onde o condutor aproveitou a ocasião para me pedir um favor, pois tendo-lhe eu solicitado que me levasse ao Estado-Maior da Armada terá deduzido que provavelmente o poderia ajudar a obter dispensa da apresentação regular no Quartel da Penha de França a que era obrigado enquanto confesso ex-legionário. (Ainda há pouco tempo o respectivo nome constava de uma das últimas listas de telefones fixos publicadas: Henriqueto Henriques Tomé, que assim fica para a "História"...).
Chegado ao Estado-Maior da Armada, informei o Gabinete do Chefe do Estado-Maior da Armada que tinha estado na área da confrontação, pelo que me solicitaram que entrasse no gabinete a fim de dar conta do que tinha ocorrido, o que fiz de imediato, tendo assistido depois ao decorrer de dois telefonemas feitos pelo Almirante Pinheiro de Azevedo, o primeiro para o General Costa Gomes (Presidente da República), e o segundo para o General Vasco Gonçalves (Primeiro-Ministro), ambos dando a conhecer as mais recentes informações disponíveis.
Estavam presentes o Almirante Filgueiras Soares e o Capitão-Tenente Engenheiro Construtor Naval Manuel Martins Guerreiro, que continuaram no gabinete depois de eu ter saído.
Após me retirar encontrei na rua o Capitão-Tenente Engenheiro Maquinista Naval Gonçalves Pereira, a quem relatei o sucedido, tendo depois regressado ao Alfeite.
A título de curiosidade, e reflectindo sobre a construção e evolução da memória humana, refiro que um distinto Advogado que tinha conhecido há alguns meses me reiterou que se lembrava de me ter encontrado naquele mesmo dia, depois do episódio em causa, e que nos tínhamos então dirigido ao gabinete do Primeiro-Ministro, a quem eu teria transmitido o que tinha observado.
Porém, creio que nunca encontrei na minha vida o General Vasco Gonçalves ...
(Mais uma razão para ter classificado este tipo de recordações como "Semimórias").
9.Abril.2018
(Hoje, 20.06.2021, a Dra.Maria Casinha, pessoa que muito admiro dadas as suas profundas convicções e exemplar espírito democrático, recordou-me - a propósito do presente texto - a existência da seguinte entrevista, da autoria do prestigiado Jornalista António Louçã, que o complementa pormenorizadamente:
https://www.rtp.pt/noticias/11-de-marco-golpe/o-11-de-marco-40-anos-depois-luis-costa-correia-conta-como-foi-de-taxi-para-o-local-dos-confrontos_n810755 )