Sobre a ocupação da Sede da DGS/ PIDE - 1974 (Semimórias)
Em texto anterior relatei as circunstâncias em que por acasos do destino fui encarregado de coordenar as Forças de Fuzileiros que iriam executar a operação que visava ocupar a sede da DGS/PIDE, na Rua António Maria Cardoso em Lisboa, em 25 de Abril de 1974 : Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) n.º10, comandado pelo então 1º Tenente Fernando Vargas de Matos (agora Vice-Almirante), e uma Companhia de Fuzileiros, comandada pelo então 2º Tenente António Lobo Varela (infelizmente já falecido, no posto de Capitão-de-fragata).
Esta Companhia de Fuzileiros, constituída por diversos elementos que prestavam serviço na Força de Fuzileiros do Continente (sediada na Base Naval do Alfeite), embarcou em 3 viaturas no final da tarde de 25 de Abril, após eu ter proferido uma alocução explicativa da missão que iria ser cumprida, acentuando que visava o estabelecimento de um regime democrático, e perguntado se alguém não aceitaria nela participar, ninguém se tendo manifestado.
O Destacamento de Fuzileiros Especiais, que aguardava instruções junto à estátua de Cristo-Rei, viria a juntar-se mais tarde à Companhia de Fuzileiros, ficando ambas as Unidades sob a minha coordenação.
Ambas as unidades chegaram às instalações da Marinha cerca das 20:00, tendo as respectivas viaturas estacionado junto ao portão sul, na Av.Ribeira das Naus, e eu entrado no parque de estacionamento, onde os Comandantes Marques Abrantes e Abel de Oliveira vieram ao meu encontro para comunicarem que o Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Ferreira de Almeida, já tinha informado a Marinha da sua adesão ao movimento militar.
Solicitei ao Comandante Marques Abrantes que transmitisse ao Almirante Ferreira de Almeida o meu agradecimento pela sua informação; e entretanto foi-me pedido que viesse atender um telefonema do Comandante Carlos Almada Contreiras, que me disse que a PIDE tinha disparado sobre manifestantes, tendo morto alguns, pelo que solicitava a nossa rápida deslocação para cercar a Sede respectiva, ao que partimos de imediato para o local.
À chegada ao Chiado constatámos que já havia carros de combate do Exército na zona, pelo que de pronto procurei o respectivo comandante, enquanto as Forças de Marinha desembarcavam das viaturas.
Pouco passava das 21:00.
Conheci então o Capitão de Cavalaria Andrade Moura (do Regimento de Cavalaria 3 - Estremoz) e ajustámos o dispositivo de cerco: dois carros de combate ficariam na rua Duque de Bragança, outro na rua Vítor Cordon, e mantendo-se na Rua António Maria Cardoso, frente à Sede da DGS/PIDE, o carro de combate que já lá estava; o Destacamento de Fuzileiros Especiais, no Chiado, entre o Largo de Camões e a rua Duques de Bragança, e a Companhia de Fuzileiros ao longo da Rua do Alecrim, visando se assim isolar a sede da DGS/PIDE até ao momento em que fosse decidida a respectiva ocupação.
Esperar-nos-ia uma longa noite, na companhia de muitos cidadãos e de diversos jornalistas, ansiosos por presenciar o que sucederia.
Durante a noite foram capturados alguns agentes da DGS/PIDE, que ficaram detidos no Governo Civil, e foi mantido contacto regular com o Comandante Contreiras (através do recurso a uma cabina telefónica), que como comandante "de facto" das operações das citadas Forças de Marinha em terra assegurava telefonicamente a coordenação com o comandante (o então Major Otelo Saraiva de Carvalho, agora Coronel) - no Regimento da Pontinha - das operações das Forças do Exército e da Força Aėrea igualmente envolvidas nas acções visando a deposição do Governo.
(Recordo-me entretanto e por exemplo de durante a noite ter sido abordado pelo jornalista Benjamim Formigo, do Expresso, que me perguntou quais eram os nossos objectivos, tendo-lhe respondido que o essencial era a instalação da Democracia, o que obviamente incluía a liberdade de imprensa).
Cerca das 08:00 mandei seleccionar um dos agentes detidos para ser portador de uma mensagem verbal dirigida ao Director-geral da DGS/PIDE informando-o de que iríamos entrar na Sede, recomendando os necessários cuidados para que fossem evitados incidentes, missão que o Agente J.Azevedo executou trazendo a respectiva confirmação.
(Tinha prometido ao citado Agente que teria posteriormente um tratamento preferencial, o que sem êxito tentei que fosse concretizado - situação que muito me viria a decepcionar).
Tinha chegado entretanto ao Chiado uma nova Força de Fuzileiros, comandada pelo Capitão-tenente Abrantes Serra, com instruções para reforçar o cerco (portadora aliás de uma "bazooka" para o caso de ser necessário um assalto à sede).
Dado já não ser obviamente necessário qualquer reforço sugeri-lhe que a Força se dirigisse para o Forte de Caxias onde provavelmente seria necessário proceder à libertação dos presos políticos, ideia que logo aceitou.
Solicitei então ao Comandante Contreiras o assentimento quanto às minhas intenções, e, acompanhado pelo 1º Tenente Vargas de Matos bem como por alguns jornalistas, desci a rua António Maria Cardoso, tendo constatado que o meu Camarada de curso nos Estudos preparatórios militares, Major Campos Andrada, descia também a rua para se juntar ao grupo que referi, pelo que o acolhi com gosto pois havia muitos anos que não o encontrava.
E assim entrámos na Sede da DGS/PIDE, tendo subido a escadaria para acedermos então ao gabinete do Director-Geral, onde o Major Silva Pais nos esperava, acompanhado por diversos colaboradores seus, tendo-nos prontamente dito que a Direcção-Geral de Segurança estava ao lado das Forças Armadas, ao que de imediato lhe acentuei: "senhor Major, então não compreendo porque é que aqueles retratos ainda se encontram pendurados neste seu gabinete" (referindo-me obviamente aos do Dr Oliveira Salazar, Alm.Américo Tomás, e Prof.Marcelo Caetano).
O Major Silva Pais fez logo menção de os ir retirar, pelo que lhe disse que seria melhor encarregar alguns dos seus colaboradores de procederem a tal tarefa - o que rapidamente foi concretizado em acto cujo profundo simbolismo assinalava o termo das operações militares desencadeadas na véspera visando a deposição do regime político ditatorial vigente.
Entretanto constatei que militares do Regimento de Estremoz sob o comando do então Capitão de Cavalaria Alberto Ferreira - agora Coronel - nos tinham precedido na entrada no edifício e estavam já a proceder ao desarmamento do pessoal da DGS/PIDE, arrecadando as armas no gabinete adjacente ao do Director-Geral, e indicando-lhes as salas onde deveriam aguardar instruções quanto ao seu destino, pelo que ajustei com o 1º Tenente Vargas de Matos e com o 2º Tenente Lobo Varela um dispositivo de segurança em torno da Sede, nas ruas António Maria Cardoso, Duques de Bragança, Vítor Cordon, e Alecrim, visando não só conter a população que se ia acumulando nas imediações exigindo "justiça imediata", mas também explicando que competiria aos Tribunais julgar os responsáveis pelos lamentáveis procedimentos que tinham ocorrido na noite anterior - e ficando comigo no interior do edificio um pequeno grupo para assegurar a coordenação com as forças exteriores e com os Camaradas de Armas de Cavalaria 3 que continuavam - já sob o comando presencial do Capitão Andrade Moura, regressado do Quartel do Carmo, onde tinha pernoitado - a revista interior aos diversos gabinetes existentes, a qual foi dada por terminada antes das 18:00, ocasião em que se retiraram dirigindo-se para o Regimento de Lanceiros 2 onde iriam ficar a descansar antes de regressarem a Estremoz no dia 27.
Instalado o dispositivo de segurança no exterior e verificando que seria necessário reforçar a ocupação interior com pessoal mais qualificado iniciei imediatamente a solicitação telefónica ao Estado-Maior da Armada do envio de mais Oficiais e de outro pessoal para render o de Cavalaria 3 que se iria retirar, tendo tido pronta resposta - pois alguns apresentaram-se logo às 19:00 - e sugeri que o Destacamento de Marinha no edifício da Rua António Maria Cardoso passasse a ser oficialmente designado por DestacMarCardoso - o que foi logo aprovado, dando-se assim o primeiro passo na intervenção da Marinha no processo de extinção da DGS/PIDE.
Convidei então o Major Silva Pais a informar-me sobre alguns elementos essenciais para a compreensão da organização interna da DGS/PIDE, ao que prontamente acedeu.
E comecei pela pasta de Despacho, cujo primeiro separador se referia a transcrições de escutas telefónicas.
"Meu Major, não me diga que a Direcção-Geral de Segurança escutava os telefonemas de cidadãos !", disse-lhe de imediato, em tom algo irónico.
"Eram instruções que nos eram dadas, senhor Comandante".
Abri o separador, e qual a primeira que aguardava comentário? Adriano Moreira.
Fechei logo o separador, pois entendi que a decisão sobre o tratamento a dar àquele assunto requeria uma avaliação política que me transcendia, e perpassei o meu olhar pelos restantes separadores, não tendo encontrado nada que requeresse decisões urgentes, pelo que solicitei ao Major Silva Pais que me explicasse como era constituída a Direcção-Geral, encarregando também o então Sargento Miranda (agora Oficial Superior) de - dado eu ser o Oficial mais graduado presente no edifício - informar o pessoal da DGS que deveria aguardar instruções nos gabinetes e salas que lhes tinham sido indicados como locais de permanência pelos nossos Camaradas do Exército, que entretanto continuavam a revista a todo o edifício que tinham iniciado no princípio da manhã.
Cerca das 18:30, já depois da partida das Forças de Cavalaria 3, apresentou-se um estafeta portador de um documento assinado pelo general Spínola e com selo branco ilegível, no qual era nomeado como novo Director-Geral de Segurança o Inspector Superior Coelho Dias.
Solicitei que viesse à minha presença, entreguei-lhe o documento, felicitei-o, e quando me perguntou qual seria o seu gabinete disse-lhe que como certamente estaria muito fatigado o melhor seria ir descansar para a sua residência onde aguardaria adequadas indicações.
E, dirigindo-me ao Sargento Miranda, solicitei que providenciasse por que uma viatura transportasse o Sr.Inspector a sua casa, acompanhado por escolta apropriada.
E, assim que saiu do gabinete do Director-Geral (onde nos encontrávamos) ordenei ao então Marinheiro Luís (depois distinto elemento da PSP) que fosse avisar os inúmeros jornalistas, que estavam autorizados a aguardar perto da entrada do edifício, que havia alguém que tinha acabado de ser nomeado Director-Geral de Segurança.
Jornalistas que cumpriram o seu dever de rapidamente informar o País sobre as intenções do General Spínola, possibilitando assim a sua reavaliação.
Umas horas mais tarde são libertados do Forte de Caxias os presos políticos, tendo o pessoal da DGS/PIDE ido ocupar as celas deixadas vagas.
Terminada a operação da tomada da Sede, bem como das suas Prisões e Delegações, iniciar-se-ia a primeira fase da extinção da DGS/PIDE.
Outros intervenientes entrariam em cena.
(Imagens daquele dia, coroadas com um cantar alentejano, em:
https://youtu.be/dQNHW_MZ0fI?si=b7uWLPTu26kjsMeu
16.Agosto.2020
(Introduzidas pequenas alterações em 22. Agosto.2020).