Um belo e comovente texto de Custódia Casanova

 .. 17. Fev.2021 .. 

Um belo e comovente texto de Custódia Casanova:

AINDA HISTÓRIAS DE ABRIL, PARA SEMPRE

Estamos em Março, mês de Primavera, mês de festejar o renovo da natureza, mês em que, desde há muito, celebro o encontro com o meu amor primeiro, mês em que nasceste, meu querido filho, e é também, neste 2020, mês para te trazermos para casa, mãe. Um vírus que não conhecemos fez-nos sentir que essa era a melhor decisão. E assim, neste isolamento em que nos colocámos, há tempo para pensar, recordar, para estar, como há muito não estávamos. 

Na grande maioria das vezes, não entendo as tuas frases, mãe. Esta terrível doença leva-te a dizer palavras que não existem em nenhum dicionário. Como é possível dizeres tantas frases e quase nenhuma delas ter ligação com o que vivemos?!

São poucas as que nos levam a pensar que recordas ainda coisas vividas há muito e, por qualquer razão, a tua memória trouxe agora até nós.

Apenas com alguns segundos entre elas, as tuas frases surgem em catadupa e deixam-te muito cansada. Chego a pensar que tens medo que o silêncio te cale para sempre. Algumas vezes falas com entoação de pergunta, outras dás respostas a perguntas imaginárias:

  - “A minha cara é só uma onda, é apenas uma onda”;

 - “As meninas, nos dias de festa, vestem-se com tudo quanto têm, e depois?”

- “Não sei o que é para fazer, só quero ir para casa e abalar”;

  - “A beleza da vida não tem ciência nem maravilha”.

Estes são exemplos que registei das centenas de frases que vais desfiando ao longo do dia. 

Queria tanto levar-te a conversar, mas tu continuas no teu mundo interior, alheia ao que te rodeia e os teus monólogos são imparáveis.

Como não me reconheces, mãe? Falaste das meninas que se vestem com tudo quanto têm nos dias de festa e eu aproveito para te lembrar dos vestidos que nos fazias na máquina de costura, por alturas da Feira Anual ou pela Festa do Santíssimo Sacramento. Em vão, tento trazer para a nossa conversa o arraial no Largo do Coreto, os foguetes e o medo que eu tinha quando estes rebentavam, a procissão com andores, pendões e pálio e os meninos e meninas vestidos de anjinhos, com asas e tudo. 

Lembro também o quanto eu estranhava que o meu nome fosse o mesmo daquela peça brilhante que me parecia uma estrela e que seguia naquela procissão, sob o pálio, durante a festa do fim do Verão da nossa aldeia encantada… Por que não me respondes a nada disto, mãe?

- Esta é a tua casa. Eu sou a tua filha mais velha. Não precisas de abalar para lado nenhum. Já estás em tua casa, mãe.

- A tua cara é uma onda?! Pode ser, sim. Mas é uma onda bonita. Lembras-te quando usavas uma trança e a prendias atrás, com ganchos e travessa com pedrinhas? Era tão bonito, esse teu penteado!

- Como é triste que não te lembres das palavras que delicadamente arrumavas nos poemas que escrevias e que tantas vezes te apaziguavam e outras tantas te inquietavam.


“Já Sou Inverno da Vida, Meu Amigo

Neste Outono da minha vida, meu amigo,

Trago comigo esta mágoa

Que me vai rasgando o peito. (…)

Gostava de te ver nas noites frias

Sentado à lareira e a sonhar,

Quando o vento sorrateiro soprava

E a luz do candeeiro iluminava o teu olhar.

Cheiravas à madrugada e à flor do alecrim, (…)

Eras um rio fresco no Verão, 

Cheirando a terra molhada.

Sabias ao trigo e ao pão que eu comia contigo

e de que tanto gostava. (…).


Que doença tão estranha. Por mais que tentemos trazer à lembrança alguma referência que faça sentido, a nossa mãe não se recorda. Não se lembra do nome de objectos usuais ou para que servem, dos frutos de que sempre gostou, das cores… Se tentamos que leia uma pequena frase, concentra-se apenas numa das letras, do princípio ou do meio de uma palavra e inventa outra que comece pelo fonema dessa mesma letra. Por vezes, com este pronuncia “palavras” que não existem. 

De vez em quando diz que está muito triste mas, felizmente, há muito que não a vemos chorar…

Porém, Abril chegou e com ele veio também o dia do seu aniversário. Apesar deste tempo de pandemia, cantámos e chorámos os seus oitenta e cinco anos que completou em 25 de Abril. 

Cantámos os parabéns e pouco depois a Grândola, Vila Morena. E, como que por um acender de memória, a Grândola encheu os seus olhos de lágrimas e disse-nos: “essa é muito bonita!” – Chorámos as três de emoção, mas cantámo-la até ao fim. 

Estes longos dias e noites passados em quase total isolamento têm sido muito cansativos pela exigência que nos impõe a dependência de minha mãe. No entanto, eles também têm permitido recordar situações muito enriquecedoras e que gostaria que a minha memória não apagasse nunca. 

Perante a situação que diariamente observamos, este é um medo que me tem assolado todos estes dias.

Será que também poderei esquecer os dias felizes na nossa aldeia?! E aqueles serões de noites muito quentes em que brincávamos na Rua de Avis?! Não tínhamos ainda luz eléctrica e, por isso, todo o céu estrelado era um deslumbramento. Milhões de estrelas cintilavam e todas as noites procurávamos uma muito maior que as outras, a “Estrela do pôr-do-ar-dia”. Só muito mais tarde soubemos ser um planeta. E a Estrada de Santiago? A escuridão da nossa rua permitia-nos contemplá-la e imaginávamos tantas coisas que poderiam acontecer naquela Estrada. Não sabíamos de onde vinha nem para onde ia, mas certamente levaria a algum lugar lindo no céu… 

E os pirilampos que em vão tentávamos apanhar?! Como é possível que tenham desaparecido por completo destas paragens?! Que maldades temos feito ao meio ambiente que os fez desaparecer?!

E as histórias que ouvíamos à porta da Ti’ Custódia quando esta se sentava ao fresco?! E o caminho para a escola que nos parecia tão longo?! Primeiro a Rua de Avis, depois seguir pela Rua Grande, passar na Praça do Coreto, Rua Velha, Largo da Anta, Rua Conselheiro Fernando de Sousa, atravessar a encruzilhada de estradas de onde nos vinha o aceno do mar ou de Espanha, como escreveu Namora e, finalmente, fazer mais uns cinquenta metros, até ao portão da escola. Nessa altura, havia tantas crianças que enchiam as quatro salas de aula da aldeia. Actualmente, os meninos da pré-escolar e do 1º ciclo não enchem uma sala e nem sequer são em número suficiente para constituir uma equipa de futebol.         

Tanta coisa já mudou desde esse tempo em que vínhamos à porta pela tardinha, para ver passar os carros de parelhas que recolhiam ao Prédio Grande, ali mesmo em frente da nossa casa. Os cascavéis que cada parelha usava eram diferentes uns dos outros e era um gosto ouvi-los quando subiam a ladeira da fonte. Os carreiros usavam chapéu e lenço na cabeça, para se protegerem do calor abrasador e nas pernas tinham safões de carneira que lhes protegiam as roupas e o corpo.

Ouvia-se depois o toque das trindades. Como era bom ouvir aquele sino ao fim da tarde! Havia, porém, um toque que ninguém gostava de ouvir – “Os Sinais”. Três toques e logo dizíamos:  morreu um homem! Dois toques: morreu uma mulher! 

Havia também algumas regras que não entendíamos, mas que nunca púnhamos em causa. Tudo o que os pais, a senhora professora ou o senhor padre diziam era para cumprir e nem sequer se colocava a hipótese de questionar fosse o que fosse. Na rua nós, as meninas, não poderíamos brincar com rapazes nem seguir com eles no caminho para a escola. Não era bonito, diziam-nos. 

Nas salas de aula, tal como na igreja, também não nos misturávamos. Havia a Escola Feminina e a Masculina. 

Na igreja, algumas filas de bancos da frente tinham uma pequena placa que dizia “Crianças”. No entanto, as meninas ficavam de um dos lados da coxia e os meninos do outro.

As filas de bancos mais recuados tinham outra pequena placa que dizia “Homens”. Deduzia-se que os bancos do meio, em muito maior número, estavam reservados às mulheres. 

Nas naves laterais da igreja, junto das filas de bancos de madeira, de forma espaçada, havia algumas cadeiras e genuflexórios individuais para uso exclusivo das donas dos mesmos.

Apenas a pia de água-benta, perto da entrada, era de uso comum, para fazer o sinal da cruz na testa.

Quando morria algum familiar próximo, as crianças usavam um “Fumo” no braço que era afinal uma sinalização, uma lembrança permanente, feita com uma fita preta. Apesar de tudo, por aqui não nos vestiam de preto como em outras zonas do Alentejo. Os adultos sim, vestiam-se todos de luto, durante longos anos. 

As mulheres que ficavam viúvas não mais poderiam vestir outra cor e o traje incluía lenço na cabeça. E nada de mangas curtas ou decotes ousados. Estes não eram considerados adequados. 

Na adolescência, tudo era também vivido em grande contenção. Poucas raparigas usavam calças e não poderíamos entrar no Liceu sem meias, quer fosse Inverno ou Verão. 

Nos bailes, por alturas festivas, as raparigas tinham sempre a vigilância da mãe, de uma tia ou da avó. Estas ficavam sentadas na fila de trás das cadeiras da Sociedade do Grupo Musical. 

Era assim quando nasci, em meados dos anos cinquenta do séc. XX, em plena vigência do Estado Novo. Só no início dos anos setenta começámos a sentir alguma abertura nos hábitos que estavam enraizados na nossa sociedade. Mesmo sem os entendermos, não conhecíamos outros, ninguém nos falara de outras maneiras de viver. Não viajávamos, nunca tínhamos visto o mar, um navio, uma biblioteca, Lisboa ou qualquer outra cidade. Não conhecíamos a sensação de andar de carro e muitos, mesmo muitos, não tinham a alegria de saber ler e escrever... Por tudo isso e muito mais, quase sempre aceitávamos silenciosamente a ordem instituída.

Foi assim a minha infância e juventude. Vivíamos felizes, mas sempre com pouco de tudo e não conhecíamos mais nada do que a nossa aldeia e os seus campos em redor que palmilhávamos a pé ou de carroça, quando havia algum dinheiro para o frete. 

Apenas tínhamos possibilidade de tomar decisões sobre a nossa vida aos vinte e um anos, quando se atingia a idade adulta. 

Antes disso, não poderíamos ter a carta de condução, por exemplo, sem que o pai, e só ele, nos desse a emancipação. 

Na legislação portuguesa de então, era o pai que detinha o poder paternal sobre os filhos, sendo ele o responsável pela orientação da instrução e educação ou a autorização para o exercício de uma profissão. 

No entanto, às mulheres, mesmo quando atingiam essa idade, muito lhes continuava vedado.

A título de exemplo lembro que, tendo acabado o curso do Magistério Primário em 1973, tomei então conhecimento que, para casar, uma professora tinha que pedir autorização ao seu superior hierárquico. A lei dizia ainda que o rendimento que auferia o suposto pretendente teria que ser sempre superior ao da professora. Além disso, a autorização do casamento tinha que vir publicada primeiro em Diário do Governo.

Outra situação muito injusta na vida das professoras de ensino primário era a que vivíamos quando, nos concursos para professores agregados, os candidatos eram classificados primeiro por sexo e depois pela nota de saída das Escolas de Magistério. Os professores/homens encabeçavam sempre as listas de candidatos. Só depois vinham as candidatas do sexo feminino. Por isso, ainda enquanto estudantes daquelas escolas, alguns alunos menos conscienciosos não se preocupavam muito com os estudos. A lei garantia-lhes que ficavam sempre à frente de qualquer candidata do sexo feminino. 

Qualquer mulher que quisesse casar com um oficial do exército português, tinha de apresentar um Atestado de Robustez Física e um Registo Criminal “limpo”, passado pelo Registo Civil. 

Embora a Constituição da República de 1933 que vigorava em 25 de Abril de 1974 tivesse estabelecido o princípio da igualdade entre os cidadãos perante a lei, havia algumas excepções. A mulher era relegada para segundo plano na família e na sociedade. 

Na lei portuguesa o marido era sempre o chefe de família e os direitos cabiam-lhe todos a ele. A esposa apenas poderia “ser ouvida”. Elas não tinham direito a voto e não poderiam exercer cargos políticos. Para trabalhar ou sair do país, tinham que ter autorização dos maridos. O divórcio era proibido devido ao acordo estabelecido em 1944 entre o Estado e a Igreja Católica.

Durante algumas décadas, a enfermagem esteve reservada apenas a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos. Algumas que desafiaram a lei vigente viram-se envolvidas em problemas pela ousadia. 

Em 1973, ainda muito jovem, fui colocada numa escola do Ensino Primário, numa aldeia do concelho de Estremoz. Não era uma pessoa muito corajosa nem esclarecida. No entanto, apesar da minha inexperiência de vida e de ensino, sei que tomei algumas atitudes que revelavam, por um lado, uma dose de ingenuidade e, por outro, vontade de pôr a nu alguns preconceitos, quando me atrevi a introduzir algumas regras que fizeram as delícias dos meus alunos.  

Foi um ano de grande entusiasmo pela doçura das crianças que tinha para ensinar, pela simpatia da colega Virgínia que lecionava a 2ª e 3ª classes e pelo lugar lindo e tranquilo que era a aldeia de Glória.

Percebi mais tarde que, apesar da minha inexperiência, eu fizera uma pequena revolução naquela escola, antes da Revolução de 25 de Abril chegar. Pequenas coisas, mas que foram notadas e até mais tarde, objecto de elogio. Lembro, por exemplo, o incentivo que dei a todas as meninas para que jogassem futebol, caso quisessem experimentar. Os meninos não acharam muita graça, porque estavam habituados a ter apenas rapazes em cada equipa. Algumas alunas gostaram tanto do jogo que, passados alguns treinos, já tinham melhores desempenhos que os alunos menos ágeis. Passaram assim a ser escolhidas para as equipas, em pé de igualdade com os melhores jogadores masculinos. 

Outra “revolução” que levei a cabo foi a de trazer livros da biblioteca escolar para dentro da sala de aula e permitir que as crianças acedessem aos livros logo que acabassem uma tarefa.

Estas e outras pequenas mudanças trouxeram muito entusiasmo e dias felizes àqueles meninos e meninas que ficaram para sempre no meu coração. 

A revolução de 25 de Abril de 1974 veio, pouco tempo depois, trazer tantas alterações positivas à sociedade portuguesa que aquelas pequenas mudanças podem parecer insignificantes, sobretudo para os jovens de hoje. Os que sempre viveram sob o regime democrático poderão mesmo ter alguma dificuldade em alcançar a verdadeira dimensão das restrições em que vivíamos. 

Antes da Revolução de Abril, as escolas tinham um funcionamento muito rígido, salvo algumas excepções onde havia alguns professores mais sensíveis, bondosos ou esclarecidos. Nelas se perpetuavam diferenças sociais e os modelos de ensino-aprendizagem não davam liberdade de escolha e de participação ao aluno. Daí que, ter possibilidade de escolher um livro, lê-lo ou simplesmente folheá-lo, dentro da sala de aula, depois de acabada uma determinada tarefa lectiva, não era uma prática pedagógica aceitável naquela altura. 

Por outro lado, a sociedade insistia em incutir a ideia de que algumas tarefas, ofícios ou jogos seriam pouco indicados para as raparigas. Estava neste caso, por exemplo, o jogar com uma bola. 

Por isso, nunca me arrependi das decisões que tomei na minha primeira turma, antes da Revolução de Abril. Elas foram, para mim e para aquelas crianças, muito importantes.

Nessa altura, em casa da maioria dos portugueses não havia livros para além dos escolares. Havia uma taxa de analfabetismo muito elevada, mesmo entre os adultos jovens. E nós sabíamos que os livros eram, e serão sempre, um passaporte para o sonho, a descoberta, o conhecimento.

Quanto ao desporto, sobretudo o futebol, era encarado como coisa de rapazes e às raparigas estava mais reservado o dever de ficar em casa, aprender a ser dona de casa, boa mãe e boa esposa.

As conquistas sociais trazidas pela Revolução melhoraram muito a vida dos homens e mulheres do meu país, pois trouxeram direito à igualdade de oportunidades para todos e regalias sociais, como o acesso à saúde, à educação para todas as crianças, incluindo as que tinham deficiências, e o fim do trabalho infantil, entre muitas outras. 

A Revolução aconteceu quando eu tinha pouco mais de dezoito anos e com ela comecei a descobrir um mundo que não sabia que existia. 

É com satisfação que lembro a alegria de ter vivido aquela época de descobertas, de solidariedade, de vontade de ajudar a construir um país melhor. No Verão de 1974, envolvi-me num trabalho voluntário que me trouxe enriquecimento humano e uma alegria indescritível que jamais quero esquecer. 

Durante um mês e meio, nas férias do Verão desse ano, a Câmara Municipal de Évora promoveu Campanhas de Alfabetização em dois locais da cidade e numa pequena aldeia que fica a uns treze quilómetros – Valverde. 

Integrei o grupo de seis jovens - a Cristina, o Alfredo, o Luís, o Américo e o Manuel - que rumou a Valverde para aquela aventura e é com saudade que os lembro a todos. Dois deles eram também já professores de ensino primário, tal como eu.

Os alfabetizadores tinham no essencial, duas grandes tarefas. Uma delas era desenvolvida durante o dia, a ocupar os tempos livres das crianças da aldeia. Faziam-se percursos a pé, pinturas, dramatizações, jogos, contavam-se histórias, davam-se passeios até à barragem onde alguns rapazes tomavam banho. As raparigas ainda não estavam autorizadas pelas mães a ter essa experiência. 

As actividades de interior eram desenvolvidas na sala de aula da Escola Primária da aldeia. As carteiras de madeira, de plano inclinado, destinadas essencialmente a sentar duas crianças, eram quase todas elas ocupadas por três, dado o grande número das que aderiam às actividades propostas. As suas idades variavam entre os três e os treze anos.  

A outra tarefa daquela Campanha era a alfabetização de homens e mulheres que queriam aprender a ler e escrever ou desenvolver aquilo que eventualmente já soubessem.

A sala de aula estava sempre cheia. As aulas realizavam-se durante o serão, depois do regresso do trabalho no campo, embora me lembre que havia alguns desempregados, sobretudo mulheres.  

No processo de aprendizagem da leitura e escrita baseávamo-nos no método de Paulo Freire. Este pedagogo brasileiro desenvolveu um método para ensinar a ler e a escrever, não a partir de uma cartilha, mas sim de palavras geradoras de um tema com significado para os aprendentes. Estas palavras eram depois “partidas” em “famílias” de sílabas, permitindo aprender muito rapidamente a ler e escrever, embora silabicamente. 

Em Portugal, este método foi adaptado pelo Professor Lindley Cintra e nele surgem palavras como tijolo, trabalho, ordenado, chuva, escola, vinho, saúde, máquina, etc.

Foi assim que com 18 anos me vi a tentar ensinar mulheres e homens com idades compreendidas entre 28 e 80 anos que queriam pelo menos aprender a fazer o seu nome, diziam. 

Um deles, na primeira aula disse: “Estou tão contente por estar a aprender a ler e escrever que hoje vou dormir com o lápis e com o caderno”. 

Era comovente observar toda a alegria que acontecia naquela sala de aula, quando descobriam palavras novas. Alguns choravam mesmo quando percebiam que eram capazes de ler palavras nos jornais, nos cartazes ou em qualquer suporte.

Aqueles rostos, cansados de tanto trabalho, sorriam com um entusiasmo contagiante sempre que cada um deles descobria uma nova palavra, as nossas palavras. Era uma leitura silabada mas era uma conquista gigantesca!

Foram dias muito felizes, aqueles! Para nós, jovens voluntários, aquela experiência enriqueceu-nos e ligou-nos para sempre numa amizade muito gratificante! 

A partilha de saberes e a ajuda na descoberta da leitura e escrita davam-nos, todos os dias, um contentamento que ainda hoje lembro com ternura. E, porque não quero esquecê-lo, deixo aqui este registo, para que se um dia, também a mim me faltar a memória, alguém mo possa ler, para que eu revisite esses momentos felizes. 

Esta experiência de alfabetização que a Revolução de Abril me permitiu levou-me também a encontrar num daqueles jovens alfabetizadores – o Manuel, o meu amor primeiro. Começou por ser uma curiosidade, passou depois a admiração e a um sentimento que foi crescendo em intensidade e se transformou num grande amor. 

Nesse Verão trocámos correspondência. Ainda se escreviam cartas e ele vivia em Lisboa. Regressara de Moçambique em 1970, evacuado de urgência, gravemente ferido pela explosão de uma mina. Era um dos muitos jovens militares que, sendo pacíficos, eram obrigados a fazer a guerra colonial que não queriam. O seu corpo ficou cheio de estilhaços e foram necessários dois anos para recuperação, no Hospital da Estrela, de onde saiu com marcas irreversíveis.  

Pouco tempo depois daquele Verão de 1974 em Valverde, ele deixou Lisboa, rumou a Évora e integrou um grupo de técnicos que dava os primeiros passos no regime democrático, fazendo assessoria à primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal. Esta era presidida pelo meu querido e saudoso professor de desenho do Liceu de Évora, o arquitecto Manuel Tierno Bagulho.   

Para nós, foram tempos de muita descoberta, muita alegria. Eu viera da minha pequena aldeia havia oito anos e nunca ouvira falar de muitos temas que a Revolução nos trouxe. Todos os dias surgiam novos e impressionantes assuntos que a pouco e pouco fomos desbravando. 

As ruas tinham coloridos de bandeiras, manifestações e palavras de ordem que despertavam em mim curiosidade e ao mesmo tempo me motivavam a tentar entender de que lado me poderia eu posicionar perante discussões diversas. Temas como novos métodos pedagógicos de ensino-aprendizagem, ensino de crianças com deficiência, eleição de representantes sindicais que defendessem os interesses profissionais, constituição de cooperativas de ensino ou agrícolas e reforma agrária eram motivo de acesas conversas. 

Apesar de ter apenas dezanove anos e de ser muito inexperiente, eu sentia uma vontade enorme de contribuir para um mundo mais justo. 

Na Primavera do ano seguinte, começou também a Primavera mais bela da minha vida, numa tarde mágica de Março. 

Havia pouquíssimos telefones e nem sabíamos o que eram telemóveis. O encontro foi, por isso, sem marcação prévia. Os encontros eram marcados por carta ou aconteciam naturalmente, quando caminhávamos pela nossa bela cidade. 

Nesse ano, eu fora colocada em Montemor-o-Novo e recordo que nos encontrámos, depois da minha chegada a Évora, perto do Largo Camões, no percurso que diariamente fazia entre a Praça do Giraldo e a minha casa.

Seguimos depois para o snack-bar Camões localizado naquele Largo. Assim, o Poeta, o Largo e o snack-bar marcaram, para sempre o momento em que também para nós tinha chegado o tempo de mudança das vontades, do ser, da confiança: 


“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

 Muda-se o ser, muda-se a confiança

Todo o mundo é composto de mudança

Tomando sempre novas qualidades”


O espaço Camões oferecia três valências distintas, muito agradáveis e modernas para a época: o snack-bar, a pastelaria e o salão de chá. 

O snack-bar, no piso inferior, com um enorme balcão, era antecedido por um patamar onde havia um painel enorme, lindíssimo, que fazia justiça ao lugar pois nele se via Camões com um manuscrito na mão. Por onde andarão esta e tantas outras obras magníficas de Mestre Paulino? 

Afortunadamente, tínhamos em nossa casa várias obras dele. Uma delas com os seus “Pássaros do Amor” que ele tanto gostava de pintar. 

Por essa altura, tu, Manuel, passavas longas horas com ele a vê-lo pintar, a conversar, a experimentar algumas técnicas que ele te ensinava e ouvindo música clássica. Este Mestre da pintura não conseguia trabalhar sem ouvir música clássica. Recordo também a tua primeira experiência em folha de ouro, técnica que Mestre Paulino tanto gostava de usar. Nela, tu gravaste um monograma com letras entrelaçadas. 

Lembro que uma vez a televisão portuguesa veio fazer uma reportagem no atelier. Já estavam a filmar e o maçarico de Mestre Paulino, usado no trabalho com a folha de ouro, apontou por descuido para onde não devia. Tiveram que sair todos à pressa e foi necessária a intervenção dos bombeiros.

No rés-do-chão do Camões ficava a pastelaria e o salão de chá ocupava o primeiro andar. Nesse dia de Março, escolhemos o primeiro andar porque nos permitia estar sentados, frente a frente, a conversar.

Não sei de que falámos, mas foi aí que começou o nosso namoro e a partir desse dia fiquei num estado de permanente alegria e era só felicidade o que sentia.

Lembro que encarava todas as dificuldades com positivismo e de uma maneira esperançosa que penso ter conseguido manter em mim, sem esforço. Contigo, tudo era novo, até as palavras. Muitas delas não faziam parte do meu vocabulário. 

Palavras e expressões como democracia, guerra colonial, partidos políticos, eleições livres, direito ao voto, sessões de esclarecimento, igualdade de oportunidades e tantas outras que não usávamos, passaram a fazer parte de muitas conversas.

Todos estávamos a aprender e em todas as instituições se discutiam ideias e propostas para se encontrar a melhor maneira de fazer avançar a democracia. Tudo demorava sempre muito tempo a analisar, pois os debates eram muito acesos e participados. Lembro-me que esperava por ti longas horas, no banco cinzento que existia no átrio da Câmara Municipal. As muitas reuniões que se faziam a qualquer hora, no seio do grupo de técnicos que integravas, a isso obrigavam.

Não muito tempo depois, já em nossa casa, descobrimos o prazer da leitura conjunta dos nossos Poetas e fazíamos gravações em cassetes-áudio. Era o Drummond, a Sophia, o Herberto Hélder, o Eugénio de Andrade, a Natália, o Ramos Rosa e tantos outros.

Vieram também os encontros que organizávamos com os amigos, onde não faltavam a viola do Zé Pinto, o declamar inflamado do Brito, os solos melodiosos da Maria Eduarda, os poemas do querido António Monginho, as leituras de textos dos nossos escritores preferidos, alguns só então editados porque tinham sido proibidos no anterior regime, e o canto de todos nós. 

No final era quase sempre a célebre açorda que nos confortava os estômagos.

Foi também contigo que conheci tantas aldeias e trilhos antigos do nosso país, verdadeiros paraísos em Trás-os-Montes, Beiras e Minho. E que, pela primeira vez também, visitei alguns lugares lindos d’além fronteiras. Que prazer sentíamos quando descobríamos outra pousada, um museu, um monumento e a sua História, essa tua grande paixão pela História, sempre presente.

Em tudo o que nos envolvíamos havia sempre um grande empenho e uma vontade de nos superarmos. 

Lembro também os primeiros anos de comemorações do aniversário da Revolução. Além das cerimónias oficiais, saíamos para a rua e cantávamos e bebíamos em grupo de amigos… Num desses anos, talvez 1976, na taberna do amigo Parreira, ali no Bairro do Frei Aleixo, já noite dentro, estivemos com Adriano Correia de Oliveira e alguns Militares de Abril. Destes, apenas lembro dois nomes, dos que acompanhavam Adriano - Manuel Teixeira Gil e Joaquim Guerra, nossos queridos e saudosos amigos. 

Com eles e tantos outros que se foram juntando a nós, cantámos baladas, canções antes proibidas e onde não faltou a Grândola, Vila Morena, lá pela madrugada. Era tanta a felicidade que parecia não caber dentro de nós e os dias pareciam não chegar para tanto que havia por fazer. 

Quem nos diria que passados quarenta e seis anos da Revolução, no dia de celebração da Liberdade, por causa de um vírus mortífero e ainda tão pouco conhecido da humanidade, tivéssemos que cantar a Grândola, Vila Morena às janelas, por estarmos em isolamento?!

Porém, posso afirmar que, apesar disso, senti uma força interior enorme que me fez perder a hesitação, me impeliu para a porta e, embora sozinha, comecei a cantar: Grândola, Vila Morena. Pouco depois a voz da minha irmã veio em meu auxílio – terra da fraternidade - e logo outra voz se fez ouvir a meio da rua e mais outra ainda, lá mais ao fundo.

A emoção começou a crescer e no final cantávamos e chorávamos ao mesmo tempo.

No entanto, o melhor chegou quando, já dentro de casa cantámos para ti a Grândola, mãe. 

E tu, que não te recordas de nada, sorriste, e, com lágrimas nos olhos disseste: “Essa é muito bonita!”

Tu não te esqueceste de tudo, mãe! Guardaste lá bem no fundo do teu coração alguma coisa que te fez vibrar e emocionar ainda…

Por ti, e por tudo o que Abril me trouxe, relembro agora as palavras de Drummond:


“Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.”

    Custódia Maria Casanova

Évora, Junho de 2020    

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Nota: Custódia Maria Casanova escreve de acordo com a antiga ortografia. 

*Publicado na Antologia 

"O 25 de Abril de 1974 - Testemunhos de luta pela Democracia e pela Liberdade"

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