F... Marinheiro Artilheiro

 

      F... Marinheiro Artilheiro

Há alguns dias o Comandante Rui Ortigão Neves - uma das mais relevantes e emblemáticas figuras que esteveram na base de uma grande mudança de orientação ocorrida na Direcção do Clube Militar Naval há mais de cinco décadas, em pleno salazarismo - enviou-me uma cópia de um artigo meu que no final de 1967 foi publicado nos Anais do Clube Militar Naval, recordando-me que tinha tido significativo impacto nos meios navais, e que poucas semanas após a expedição do respectivo número dos Anais tinha ocorrido a famosa Assembleia Geral do Clube Militar Naval em que eu era o primeiro subscritor de uma proposta que iria modificar profundamente o Clube.

A título de curiosidade, ei-lo:


             


Luís Costa Correia.

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(E eis o trecho na sua totalidade, noutra versão):


F... Marinheiro-Artilheiro

F… é um digno Marinheiro-Artilheiro, com uma caderneta limpa, profissionalmente competente, não só como Artilheiro mas inclusivamente como praça de manobra.
Tem quase 42 anos... 
Inclusivamente descobriu a bordo um Marinheiro-Artilheiro, como ele, mas que nasceu depois de ele ter assentado praça...
Cansado da vida solitária («Eu tinha um quartinho alugado, Senhor Tenente, e o meu vencimento ia-me chegando, até para ter um ou dois fatitos à paisana — os Senhores Oficiais têm que compreender, não é, não se pode, principalmente quando o serviço não nos deixa gozar a licença do artigo, andar uma vida inteira fardado — mas o certo é que cheguei aos 34 anos cansado de viver só: chegava à noite e se não me encontrava com amigos ou camaradas com quem é que falava? Ficava para ali a olhar para as paredes... Mas sempre considerei o casamento como uma coisa muito séria, e pensei cá para comigo: Eh pá, Tu não vais sacrificar a tua futura mulher a uma vida de privações logo no início, pois não? De modo que fui até ao Corpo ver se lá na Brigada me facilitavam uma comissãozita no Ultramar, pois queria-me casar e precisava de uns dinheiros. E lá fui, e trouxe vinte e sete contitos, mas como esse tempo me custou a passar!») lá casou então. («Gastei vinte e três contos com o casamento, e fiquei com os quatro restantes para o que desse e viesse. Infelizmente a minha Mulher adoeceu pouco tempo depois, lá andámos de volta de um médico ali do Feijó, mas o que o Senhor Doutor receitava não produzia efeito que se visse, e o dinheirito lá foi andando, até que foi preciso tirar uma radiografia e eu deitei contas à vida, vi que não podia, e fui ao Hospital de Marinha falar ao Senhor Doutor F... Ele ouviu-me e disse-me «O F..., traz-me a tua Mulher que eu quero observá-la» e a partir daí tudo se resolveu pois bastavam uns comprimidos para ela se sentir melhor; foi então o navio a Cabo Verde e comprei lá, pela Cantina, uma garrafita de «whisky» por cinquenta e cinco escudos, e na volta fui lá ao Senhor Doutor, pedi-lhe desculpa, mas que lhe queria oferecer aquela modesta lembrança que infelizmente o dinheiro não dava para mais, não esperava, mas o Senhor Doutor ficou comovido, e quis recusar, mas eu insisti...»).
Tem agora um filho com três anos, e a vida é-lhe muito, mas muito, difícil («Aquilo é chapa ganha, chapa gasta, pois o Senhor Tenente está a ver: de um conto e quinhentos vão logo 650 para a renda da casa; uma garrafa de gás tem que durar dois meses; água e luz, veja quanto fica, e eu digo à Mulher: Isto tem que chegar, até ao próximo dia 27!»).
Que é que ele vê agora à sua frente? Uma promoção a cabo, depois de exame, uns escudos a mais («que irão chegar para o miúdo vestir e ir à escola, e depois.»). Tudo no meio de («enormes sacrifícios, pois não temos dinheiro para ir a uma praia ou do campo; passeios só aqueles que se dão a pé, pois são de graça, cinema não pode ser, ainda o que vale são alguns dias em que a Televisão dá um programa mais jeitoso, pois lá se vai com a Mulher e o Miúdo ao café — mesmo assim a minha Mulher lá vai dizendo que aqueles 4 ou 5 escudos ainda são capazes de nos fazer falta — quando às vezes não vou eu sòzinho ou apenas com o Miúdo...»).
Que pode ele fazer? Outra comissão no Ultramar? E mais duas ou três! Até que consiga dar uma preparação técnica ao seu Filho? Sim, porque ele não prevê sequer a hipótese de poder vir a ter outro filho!
Mas será humanamente de admitir que para dar uma vida um pouco mais desafogada à sua própria Família ele tenha que estar separado dela?
Cada interrogação deste Homem é uma seta apontada à Corporação. Não uma seta agressiva, revoltada, mas desiludida, decepcionada. Uma Corporação que é mais profissional do que é dependente dos indivíduos que nela cumpram o seu Serviço Militar tem que se basear nas Relações Humanas entre os seus profissionais. E elas podem ser muito melhores se ao indivíduo mediano sorrirem melhores perspectivas materiais como reflexo de uma sua melhor actuação.
L. C.